É o fim do rádio? (ou o que vem por aí?)

O que vai acontecer com o rádio esportivo caso passe no Senado lei que obriga emissoras a pagar para cobrir os campeonatos? Se você acha que é o fim do rádio, você está errado (como você conheceu, ele já acabou).

Carlos Guimarães
15 min readJul 8, 2022
As emissoras de rádio terão de pagar para entrar num estádio de futebol? O fim do rádio não é a morte do rádio — é apenas o fim das coisas como a gente conheceu. Foto: site Só Esporte (em reprodução de texto de Rodney Brocanelli)

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1153/19, que altera as diretrizes da Lei Pelé. A Lei Geral do Esporte reconfigura questões relativas a clubes, atletas, prática de empresários, direitos de imagem, federações e à atuação da imprensa na cobertura dos campeonatos. O que interessa nesse texto são os artigos 159 e 160, referentes à cobrança de direitos de transmissão para as emissoras de rádio. Eis o texto:

Art. 159. A difusão de imagens e/ou sons captadas em eventos
esportivos é passível de exploração comercial.

Parágrafo único. Os dados estatísticos decorrentes das partidas
disputadas em competições integram o rol de direitos comerciais e, portanto,
pertencem integral e exclusivamente às respectivas entidades de
administração do desporto.

Art. 160. Pertence às organizações esportivas mandantes que se
dedicam à prática esportiva em competições o direito de exploração e
comercialização de difusão de imagens e/ou sons, consistente na prerrogativa privativa de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de evento esportivo de que participem.

Reprodução dos artigos 159 e 160 do PL 1153/19.

Resumidamente: qualquer clube mandante poderá cobrar de uma emissora que decida transmitir seus jogos. Atualmente, permite-se que qualquer rádio transmita qualquer partida do Campeonato Brasileiro, arcando apenas com os custos operacionais. O texto ainda não passou pelo Senado. E se isso acontecer? Será o fim do rádio esportivo? Coloco alguns pontos importantes para chegar à minha interpretação sobre o que pode acontecer caso o projeto seja aprovado. Além disso, também é um panorama sobre aquilo que é o rádio esportivo. Um spoiler: o rádio que você conheceu pode já ter acabado sem que você se desse conta.

A elitização do esporte

É preciso colocar um primeiro ponto dentro daquilo que acredito que vá acontecer no Senado: a Lei Geral do Esporte será aprovada com alterações no texto original. Entre essas alterações, está justamente a página 81, com a íntegra reproduzida acima. Ainda não será dessa vez que as emissoras de rádio terão de pagar para transmitir um jogo de futebol no Brasil. Entretanto, estamos na contagem regressiva para que isto aconteça. Trata-se de mais um capítulo no processo de elitização do esporte, do encarecimento do espetáculo e da finalização do futebol como espetáculo midiático-mercadológico.

Até os anos 2000, o estádio era o espaço popular, um encontro de pessoas que torciam para um mesmo clube e que se reuniam diante de um objetivo em comum. Essa reunião era composta por gente de todas as origens, classes sociais, etnias e destinos. Os espaços populares são os locais em que as desigualdades são reduzidas e esses distanciamentos sociais são encolhidos por conta de suas configurações. Eram a praia, o estádio de futebol, a praça, a rua, o Carnaval. Eram. A lógica de mercado diz o seguinte: onde tem gente, tem consumo. Então, vieram as empresas, o processo de privatização dos espaços públicos, a europeização dos mesmos espaços, a padronização dos ambientes, a gentrificação da vida. O que era popular dá lugar ao fast-food insípido da higienização dos espaços. A praça dá lugar ao condomínio fechado, a praia dá lugar ao resort, a rua dá lugar ao camarote e a geral dá lugar aos skyboxes.

No futebol, desde que a FIFA instituiu essas padronizações, houve uma espécie de corrida do ouro para que os estádios ficassem com a cara da… FIFA. “Estádio padrão FIFA” é uma marca de orgulho. Em nenhum momento, um clube de ponta no futebol brasileiro pensou em colocar um “estádio com padrão (nosso torcedor)”. É a lei de mercado mais cruel possível: não é a FIFA que cede às características locais, aos contextos culturais ou às essências dos clubes; são os clubes que cedem às exigências da FIFA. O resultado é o fim da identidade dos espaços populares. É óbvio que eles são mais confortáveis, mais acessíveis e mais funcionais. Mas tudo isso custa caro em dois sentidos: a) é preciso pagar por todo esse conforto e b) o “entorno” do futebol deixa de ser charmoso para ser uma experiência de primeiro mundo (sic).

A chamada arenização do futebol acompanhou o frenesi causado pela realização da Copa do Mundo em 2014. Como dizia o Petkovic, “tudo vai dar certo depois da Copa, pessoal”. Sonhávamos com metrôs e BRTs e VLTs e praças multiuso e espaços que reúnem de show de rock a balada gourmet. Acordamos sem dinheiro para tudo isso. É um elefante branco do paradoxo: os espaços populares sumiram porque, se é preciso pagar caro para estar neles, eles deixam de ser populares.

É caro assistir a um jogo no estádio. O transporte é caro, a alimentação é cara, o ingresso é muito caro, a logística é cara. No entanto, em troca da experiência de primeiro mundo, justifica-se o preço falando em conforto, comodidade e serviço de qualidade. Curiosamente, a razão de existir o estádio não é contemplada nesse combo, até porque é o fenômeno que independe dessa estrutura: paga-se mais caro por espetáculos cada vez piores no campo de jogo. Esse é outro assunto, ficaremos ainda na elitização do esporte, que é irreversível. Business is business. Qualquer negócio dentro do mundo de futebol precisa passar pelas chancelas da FIFA e das empresas que investem alto para que a bola continue a rolar. E, para que essa engrenagem siga girando, é preciso que de desconstrua tudo que é popular. Inclusive, o rádio.

O rádio: a última instância da tradição

Você ainda ouve rádio? Essa pergunta é interessante na medida em que pouco se fala dele. Você pode ouvir rádio e seguir informado sem consumir qualquer outra mídia. E você pode deixar de ouvir totalmente o rádio e seguir informado apenas consumindo outras mídias. Mas o que diferencia o rádio das outras mídias? Ele é gratuito, basta que se tenha um aparelho para sintonizá-lo. Esse aparelho é bem mais barato do que qualquer televisor ou telefone celular. Ele é acessível, na medida em que você pode fazer uma outra atividade e ao mesmo tempo ouvi-lo. Ele é portátil, ou seja, é um aparelho leve que você pode levar dentro de uma bolsa. Então, por que hoje em dia ele repercute menos que outras mídias, como redes sociais, streamings e novas tecnologias?

A resposta é subjetiva, mas compartilho algumas impressões sobre este fenômeno. Primeiro, o ser humano se encanta com que é novo. Toda tecnologia pressupõe uma novidade; logo, pressupõe um encantamento. Segundo, estamos na era do pertencimento. É preciso viralizar ou entender o que viralizou para estar afinado com “tudo isso que existe aí”. Vocês lembram da moda das lives lá no início da pandemia? Pois então, quem aguenta ver uma live enorme como naquela época? Ok, o cenário é outro, mas mesmo durante o período de confinamento, o modelo se esgotou. Como diz Jean Baudrillard, as coisas se esvaem por excesso, não por escassez. É a lógica da paleta mexicana: nem toda moda é boa. O terceiro ponto trata justamente disso. Vamos à descoberta dos podcasts. Tem podcast para todos os gostos e tipos. Curiosamente, as pessoas estão dispostas a ouvir um podcast e, mesmo com praticamente todos os discos do mundo à disposição, não querem mais ouvir uma música nova. É porque o podcast fala e você se sente incluído para poder debater aquilo que foi falado com outra pessoa. É quase um audiocurso: você parece aprender com aquilo. Outra prova disso é o sucesso que uma música como Running up that Hill, da Kate Bush, fez por conta de uma cena de Stranger Things. Ora, a canção é de 1985 e eu adoro ela faz tempo. Experiência antropológica: mostre uma música razoavelmente desconhecida — e boa — para um público para ver a reação. Espere um mês e faça essa música viralizar no TikTok. A reação do mesmo público será diferente. Estamos mais acessíveis a, além daquilo que fornece uma ideia de novo (e que às vezes pode nem ser tão novo assim), consumir de uma forma diferente tudo que viraliza. Tempos líquidos, certo? Consome-se, faz a dancinha, participa, pertence, descarta, porque já tem uma nova dancinha e, cá entre nós, ninguém quer ser CRINGE, não é mesmo?

Então, vamos falar do podcast também porque rádio é coisa de velho. Mas não é sobre apenas o comportamento do público. Com tanto tempo de existência, da mesma forma que o rádio consolidou uma popularidade, ele não se renovou. Apegou-se numa tradição em que parece feio ou moderninho demais buscar algo novo nesse meio. O rádio rejeita o moderninho porque ele tem um limite para se renovar. É como se a tradição compusesse o seu ethos, a sua razão de existir. Vou dar um exemplo disso. Convivo com pesquisadores e radialistas cotidianamente. Sabe o que mais encanta os meus colegas? A narração de um gol em 1975, uma cobertura internacional de 1968, uma entrevista de 1982, uma vinheta de 1991. O rádio, quando olha para si, olha para trás, nunca para a frente.

Então, o que encanta os mesmos quando falamos de futuro? Podcasts. A impressionante audiência de A mulher da casa abandonada, podcast narrativo da Folha de S. Paulo, fez com que o tal logradouro, em São Paulo, se tornasse ponto turístico. Existe uma mágica num formato que chamaríamos há 20 anos de “documentário em áudio”. Não é propriamente novo. Lembro que, em 2006, produzi, ao lado de colegas da Rádio Gaúcha, uma série especial chamada “A Copa do Mundo contada de um jeito diferente”, em que contávamos a história das Copas de acordo com a história da humanidade. O que fazíamos em 2006? Acertou quem disse podcast. Eu vejo o futuro repetir o passado.

É quase enlouquecedor pensar no rádio atual sem se dar conta de que esse futuro já foi feito e mesmo assim ele parece uma bomba prestes a explodir o rádio tradicional. Talvez porque quando se fala em tradição, estejamos diretamente relacionando o rádio a uma memória afetiva. Tudo que é “do nosso tempo” parece ser melhor do que aquilo que é “do tempo”. A gente escolhe um “tempo nosso” e se apega a ele, porque éramos felizes e sabíamos. Cada presente escolhe o seu passado. Pois bem, o presente do rádio é o passado que se tornou uma roupa que não nos serve mais, mas lá estamos com aquele blusão furado que fez história em 1986, mas que agora não impressiona mais ninguém. O jovem acha feio esse blusão e sequer dá bola para ele. Marca-se, também, um conflito geracional: nos apegamos ao “rádio raiz” não só por saudosismo ou memória afetiva, mas também como elemento identitário. Somos o que somos por causa desse rádio e, espera aí, como assim destruí-lo? É que você é quem ama o passado e não vê que o novo sempre vem.

O fim da jornada esportiva

Há dois anos, no auge da pandemia, a Rádio Guaíba retransmitiu jogos históricos para compor a grade de programação enquanto os campeonatos estavam paralisados. Atentamente, ouvi às transmissões para chegar à óbvia conclusão: pouco mudou entre a narração da final do Campeonato Brasileiro de 1975 e qualquer partida de 2022. Lá se vão 47 anos de distância sem uma mudança estrutural significativa na transmissão esportiva. Mudaram as tecnologias, a fala de cada tempo, os hábitos, as produções, distribuições e mídias, o espírito da humanidade, a velocidade da rotina, menos as jornadas esportivas. E por que isso acontece?

A tradição que mencionei puxa essa fila de motivos que fazem com que uma jornada esportiva seja basicamente a mesma há 50 anos. Existe uma certa mitologia nos radialistas antigos. Parece que tudo que foi feito há 50 anos é melhor que o que é feito hoje no rádio. Quando essas transmissões foram reproduzidas, possivelmente o ouvinte não tenha feito uma análise mais criteriosa sobre como elas aconteceram. É a imagem da infalibilidade que os antigos possuem. Criamos mitos. Mas, prestando bastante atenção, é possível dizer que as transmissões de hoje em dia são melhores que as daquela época. Possivelmente NENHUMA PESSOA vai concordar comigo, mas essa opinião, polêmica e obviamente subjetiva, se escora no seguinte: a transmissão hoje é mais humana, menos robotizada, menos engessada, mais coloquial, mais conversada, mais próxima ao ouvinte. Mais uma contradição do rádio: o próprio ouvinte vai achar melhor uma época em que ele estava mais distante do comunicador, porque a lógica do pertencimento se inverte e passa a existir a lógica da mitologia. Criamos pedestais para os antigos e derrubá-los desse totem é desconstruir nossos próprios mitos. O exercício de desmitificar algo é difícil e passa por diversos processos, inclusive o da decepção. Deixá-los no trono é mais confortável para nós. Quem está disposto a mexer no vespeiro da memória afetiva?

Além desse demasiado apego ao passado, outras condições foram favoráveis a essa manutenção de estrutura na jornada esportiva. O rádio é um veículo conservador. Quem faz o rádio e quem manda no rádio é conservador ou não entende do assunto. Outro ponto importante é considerar as mídias que apareceram nesse período como concorrentes. Em 2022, cheguei a ouvir que “as redes sociais não representam o público que nos ouve”, embora elas estejam decidindo eleições, por exemplo. Ainda vejo preocupação com as transmissões em AM ou em OC, como se sinal de Internet não chegasse no interior. Ainda vejo gente preferir uma transmissão com “som ruim” por parecer mais “fiel às tradições”, algo que não acontece há, pelo menos, 20 anos. Como mudar uma estrutura se as pessoas não mudam a própria mentalidade?

Por fim, é preciso destacar o processo de precarização do rádio esportivo. A elitização do esporte encareceu o produto. Primeiro, abraçou-se o off-tube, o popular tubão, isto é, a transmissão do jogo distante do estádio, feita a partir das imagens da televisão, como forma de não perder o espetáculo. Viajar é caro. O tubo é a tábua de salvação das emissoras brasileiras. Depois, reduziu-se o efetivo das redações com o profissional multimídia, aquele que cobra o escanteio e chega à área para cabecear. Menos gente fazendo mais coisas pelo mesmo salário. A baixa remuneração também impactou na qualidade dos profissionais. É mais fácil optar por uma outra atividade do que permanecer no rádio, ainda que se tenha paixão pelo meio. A prioridade da vida é pagar os boletos em dia. E, por fim, a incapacidade de renovação tecnológica estancou um processo de renovação que seria necessário. Não é sobre colocar uma câmera para que o jogo tenha imagem. As emissoras precisam de política digital, ou seja, de uma estrutura para que se entenda que o rádio de expandiu, transbordou, invade outras mídias. Rádio não é só mais frequência; ele também é frequência. Muitos não conseguem por falta de dinheiro; mas há tantos outros que não o fazem por desconhecimento ou por teimosia. O discurso do “rádio raiz” é bonito enquanto defesa profissional e péssimo como renovação do meio — e todos os meios se renovam, a gente se renova, o tempo se renova, a vida se renova.

A pá de cal pode ser o fim da última atração que ainda mantém o rádio esportivo atuante: a cobrança de direitos para as transmissões esportivas. Seria ótimo se todos essa trajetória que o rádio deveria ter feito fosse percorrida. Como paramos no tempo, essa notícia soa como um terremoto nas já combalidas estruturas da radiodifusão esportiva brasileira. Parece que está tudo bem e, do nada, acabaram conosco. Não está nada bem. Mas pode ser, também, que não acabe conosco.

As consequências: o que vem por aí?

O que pode acontecer caso esse projeto passe pelo Senado?

  1. Desemprego em massa. Tem muita gente que depende das transmissões dos jogos para sobreviver. Teríamos muitos radialistas demitidos e, sem possibilidades no mercado, deixando a profissão.
  2. Falência de emissoras. Muitas emissoras dependem das transmissões para conseguir patrocínio, faturar e baseiam suas programações nesses modelos. Seria a extinção de diversas rádios, especialmente as radiowebs que se dedicam a essas coberturas, uma saída interessante de mercado que seria perdida por essa lei.
  3. Abalo nos influenciadores digitais. Uma nova modalidade que vem se apresentando no YouTube é a transmissão de um jogo feita pelo canal de determinado influenciador. Se formos identificar qual o maior número de acessos nos vídeos publicados por eles, veremos que aqueles que possuem um maior número de visualizações são justamente as jornadas esportivas. Sem direitos, sem transmissão. Um produto criado que seria extinto.
  4. Uma nova jornada esportiva. Tudo aquilo que é tradicional daria lugar a um novo modelo de jornadas esportivas, mais comentada, mais analítica e sem narração. Já funciona assim com diversas emissoras que, por exemplo, não têm direitos para a Copa do Mundo. É a reconfiguração mais drástica para um modelo consolidado. O ouvinte (e os profissionais) estariam preparados para isto?
  5. Um novo rádio esportivo. Com isso, seria potencializada a transição definitiva para um novo rádio esportivo, que contrasta com o tradicional e se aproxima do formato de podcasts e de falação. Na verdade, só seria a ficha caindo. Esse rádio já existe. Na época de consumo on demand, soa arcaico ainda considerar o rádio como um moderador do tempo do ouvinte. Ele não “aconselha” mais os horários às pessoas. Senti isso quando um ouvinte perguntou se falaríamos de Grêmio na Rádio Guaíba e nossa resposta foi que já tínhamos abordado esse assunto. Sua resposta foi um baque que não tomou a devida proporção no momento: “Ok, vou então recuperar na live de vocês”. Ou seja, o ouvinte deixou de ouvir a Guaíba para ouvir a Guaíba, mas dessintonizando do dial para acompanhar a mesma emissora nas redes sociais, pois o assunto presente não lhe interessava.
  6. A força dos podcasts. Se o formato não enjoar, e esse se precisa ser enfatizado, quem ganha força é o podcast. Por sua estrutura on demand, ele será o canal sob medida para que o torcedor acompanhe os fatos do cotidiano.
  7. Monopólio. Sim, haverá emissora para comprar os direitos. Poucas. A pluralidade de ofertas existente hoje daria lugar a poucas opções, não restando ao ouvinte alternativa senão escutar a única ou as poucas rádios que podem transmitir uma partida de futebol.
  8. Jornalismo torcedor. Vem ganhando força no rádio esportivo o jornalismo torcedor. Como se fala em pertencimento e defendo a hipótese de que debates esportivos são uma extensão do papo de bar, cada vez mais teremos canais com debates e torcedores analisando as partidas. Caem o distanciamento e as sumidades. No palco, gente como a gente. Pode até ser interessante para o ouvinte, mas é péssimo para os jornalistas.

E quem sai vencendo nessa história toda? Quem paga a conta do futebol. O rádio esportivo seria extinto como uma instância popular e daria lugar a outras alternativas. Ainda é rádio? Sim, é. Mas não do jeito que você sempre entendeu como sendo rádio.

O fim do rádio ou a metamorfose da mídia

Nenhuma mídia termina do nada. Não existe um fato que faça com que se extermine uma tradição. Quando elas morrem, é por conta de um processo de longo tempo. O rádio não vai morrer, mas ele vai mudar. Ou melhor, ele já mudou, por mais que a gente bata o pé para dizer que não. Mesmo que a estrutura de uma jornada esportiva seja a mesma há 50 anos, ele já se reconfigurou nas sutilezas. E talvez esse seja o futuro do meio: um rádio menos empolado e mais próximo ao ouvinte, menos engessado e mais solto, menos hierarquizado e mais despojado.

As mídias acompanham o espírito de cada tempo. O rádio parece que ficou para trás nessa lógica. O processo de midiamorfose ou metamorfose é natural, óbvio, necessário. Não se fala, não se veste, não se cumprimenta, não se come como fazíamos há 50 anos. Por que cargas d’água o rádio precisa ficar encapsulado no tempo, alheio à dinâmica da sociedade e preso a uma época que só existe no imaginário das memórias afetivas? A triste (porém óbvia) constatação é que o mundo não está nem aí para as suas memórias afetivas. Ele atropela quem para no trilho. Ele passa por cima de quem está parado. E isso é algo inescapável, inabalável e impossível de se lutar contra.

Acho que é uma questão de tempo para que sejam cobrados direitos de transmissão de jogos de futebol para as emissoras de rádio. Mesmo assim, acredito que esse texto não passe no Senado. Existem diversos interesses e uma defesa de mercado que se sobrepõe a isso tudo. Se isso acontecer, estaremos desempregando pessoas num país cheio de desempregados. Essa é a defesa da classe e isso me parece mais importante que qualquer tendência. Mas vejo que é só um empurrão com a barriga para algo irreversível. Se aconteceu o processo de elitização do futebol sem que se entendesse o contexto do que é o esporte em cada país, se os espaços populares estão sendo transformados em minimundos com curadoria de startup, se todas as instâncias identitárias de um esporte que é elemento de identidade nacional foram derrubadas, certamente farão o mesmo com a nossa última instância, que é o rádio.

Um novo rádio é necessário. Falta cair a ficha para colegas, pesquisadores, ouvintes, fãs, torcedores e gestores. Ele já vem sendo feito nas sutilezas, mas que tal pararmos de torcer o nariz para isto? Não se trata mais de ser positivo ou negativo esse fenômeno. Trata-se, tão somente, de sobrevivência. A gente muda ou se adapta para sobreviver e não porque a gente quer. É bonito ver o amor pela tradição, mas é mais bonito ainda ver um mercado aquecido, com possibilidades de carreira, com gente empregada e, veja só, com opções para que o ouvinte se sinta contemplado com aquilo que ele mais deseja ouvir. Uma tradição não pode se sobrepor a essas urgências, imperativas para a manutenção do meio, que não é mais aquele que você ouvia no colo do seu avô; ele é diferente e ainda pode ser forte. Tomara que a gente se dê conta antes de perceber que só estamos entrando num estádio de futebol como torcedores e não mais como jornalistas.

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Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.