Você entende de futebol?

Será que existe uma forma de entender tudo que envolve o jogo? Uma perspectiva a partir da complexidade do futebol como fenômeno social

Carlos Guimarães
21 min readJun 1, 2022
Pelé, a maior figura da história do futebol: como entender os fenômenos envolvidos no jogo?

Quando Garrincha chegou para seu teste no Botafogo, o grande Nilton Santos, à época já um defensor de seleção brasileira, não acreditou que aquele garoto de pernas tortas pudesse ser um dos maiores craques da história do futebol brasileiro. Garrincha deu-lhe uns dribles, suficientes para retirar-lhe essa convicção e abraçar o ponteiro como um de seus escudeiros no lendário Fogão dos anos 1950 e 1960. Fosse em 2021 esse caso, certamente Garrincha não seria integrado a nenhum grande clube do futebol mundial. Seu biotipo, suas métricas e suas desobediências fariam com que fosse dispensado no primeiro treino mais competitivo. Em 1962, Garrincha fez gol de fora da área, de falta, de cabeça, de perna esquerda e chegou até a marcar os adversários, numa época em que não se fazia isso. O Brasil foi bicampeão do mundo e, junto de Maradona em 1986, o mundo observou a maior atuação de um atleta de futebol numa edição de Mundial.

Antes dos dribles em Nilton Santos, Garrincha fora dispensado de diversos clubes. Chegando em General Severiano, contou com a desconfiança imediata dos jogadores e do lendário Gentil Cardoso, que tinha fama de ser um afiado descobridor de talentos. Por que um dos maiores jogadores da história do futebol não era visto desde cedo como um fenômeno? Porque ele desafiava a compreensão, o aprendizado, as métricas e a própria cultura. Ninguém ousava dizer que Nilton Santos e Gentil Cardoso não entendiam de futebol. Mas, se víssemos um menino com pernas completamente tortas, com traquejos de bicho do mato, dificuldades cognitivas em receber orientações e semianalfabeto, talvez até os mais profundos conhecedores também teriam a mesma reação.

Este ensaio não é sobre Garrincha. Trata-se de uma tentativa de responder à pergunta do título. Você entende de futebol? Quem entende de futebol? Como entender sobre um jogo cujo níveis de imprevisibilidade, aleatoriedade e forças inexplicáveis escapam ao controle humano? É possível entender o que não está ao nosso alcance? Para isto, é preciso antes responder a outra pergunta: o que é o futebol? Ou, ao menos, de que forma eu tratarei o futebol neste ensaio? Não há compreensão sem saber sobre o que a gente está tratando.

O que é o futebol (ou como eu tratarei o futebol neste ensaio)?

O éthos [do futebol] é tão específico quanto as cores e os brasões: as realidades políticas, os relatos históricos, os símbolos da torcida, enfim, todos os elementos que não podem ser calculados nem reduzidos a fórmulas nos lembram que há uma dimensão imaterial no futebol em geral e nos clubes em particular. Essa dimensão imaterial escapa à abordagem puramente técnico-científica. (CARRAVETTA, 2021, p.54).

Citei Garrincha porque um dos episódios mais marcantes da minha trajetória acadêmica foi quando, em 2016, num congresso em São Paulo, apresentei meu trabalho sobre a nova análise esportiva. Defendi a premissa de que o futebol passaria a gerenciar seus talentos através de métricas, estudos e componentes que mapeariam o atleta, o time e as decisões de campo. Depois da minha apresentação, um professor me provocou de maneira que eu não imaginava que seria o princípio de um reposicionamento naquilo que eu penso:

Se isso fosse feito lá nos anos 1950, o Garrincha nunca jogaria futebol.

Pensei nisso durante muito tempo. De fato, não se sabe se as análises atuais apontariam Garrincha como um talento a ser lapidado, ou melhor, deixado à mercê de sua própria natureza. Garrincha não foi lapidado, foi gerenciado para que aquela sua brutalidade, no sentido de ser um talento bruto, não fosse esculpida à forma de treinadores, dirigentes e burocratas. Garrincha é, possivelmente, o caso que mais desafia aqueles que buscam incessantemente atribuir um significado ao jogo de futebol. Instiga e provoca os estudiosos porque não tinha corpo de atleta, comportamento de atleta, pensamento de atleta, mas produzia um efeito para o jogo — como resultado e como espetáculo — que era impossível deixá-lo à margem, embora tenha sido uma figura profundamente marginalizada diante da opinião pública. Mas nunca à margem do jogo.

A figura brasileira mais conhecida no mundo é Pelé. Sua marca virou sinônimo de excelência. É o maior atleta de todos os tempos e, até hoje, nenhuma explicação sobre ele foi suficiente para mim. Eu sei o que ele fazia — efeitos — , mas por que ele fazia isto? Pelé era fisicamente estupendo, mas em seu período como jogador, outros também eram. Taticamente, era obediente, mas não como um Tostão, disposto a fazer funções que o próprio Pelé não fazia. Mentalmente, era fenomenal, mas não o suficiente para segurar uma preparação estúpida como foi a da seleção brasileira para a Copa 66. Tecnicamente, superior a todos. Técnica, resolvida a partir de um talento que foi lapidado — a leveza de 58 deu lugar à força de 70, por exemplo. Aparentemente, Pelé teve um desenvolvimento natural em sua trajetória como jogador. A diferença está, novamente, no que não conseguimos explicar: como metrificar um talento?

Essa perspectiva é quase artística. Nas artes, existe uma classificação, uma crítica, mas não um determinismo sobre o criador. Fellini, Hitchcock ou Kurosawa desenvolveram-se tecnicamente ao longo do tempo, mas não basearam esse desenvolvimento numa métrica, numa determinação. Seus filmes eram, sobretudo, frutos de desenvolvimento técnico a partir de criações, intuições e instintos. O aprimoramento técnico é um caminho natural que a gente passa, a partir de todo um sistema de coisas que gerencia o mundo, chamado comumente de sociedade. Os norte-americanos produziram um guia para fazer a “música pop perfeita”, que consiste em seguir uma série de orientações que são voltadas para a indústria, juntando letra, melodia e arranjo que serviriam ao gosto de um público que a própria indústria adestra. As músicas eternas foram feitas em cima da própria catarse artística de seus criadores, em epifanias noturnas ou em lampejos repentinos. A música pop perfeita é aquela que vem da criação do artística, não a partir de um guia criado por algum canalha da indústria do disco.

O futebol, como a arte, é o exercício do imprevisível. Ele é um jogo, mas nele também reside um espírito catártico, de onde surgem suas próprias epifanias, lampejos e soluções. Da mesma forma, o torcedor é um sujeito catártico nesse cenário. Ele é o fã, mas, diferente da arte, existe um jogo a ser vencido. Ele é um ardoroso espectador de uma batalha simbólica, em que, ali, está depositada parte de sua crença, de sua existência, de seu próprio ser. A pessoa é gremista ou colorada como é Silva, Santos ou Nascimento. Ela é gremista ou colorada como é engenheiro, advogado, mecânico ou motorista. É parte dela. Essa perspectiva, portanto, é psicológica. Como mensurar sentimento? Como dimensionar o amor? Da mesma forma que o jogo é imprevisível, aquilo que se sente sobre o jogo também não se prevê. As previsões possuem um bom índice de subjetividade, mas, em geral, existe uma lógica objetiva naquilo que a gente adivinha. No futebol, você pode adivinhar o placar de um jogo baseado em alguma lógica, mas você não pode adivinhar o modo com que você vai sentir o placar desse jogo. Você tem uma ideia, mas o baque, depois, é diferente. Sempre.

Como escreveu o professor Carravetta (2021), o futebol é, logo, o jogo da imaterialidade. Ele é uma força invisível e potente. Ele é um evento que pode ser explicado por diversos prismas, mas em todos eles, sempre haverá uma brecha para que essa imaterialidade escape. Ele pode ser explicado a partir de sua dinâmica dentro do campo de jogo, mas passa a ser imaterial com os eventos aleatórios da partida; ele pode ser explicado como um esporte, mas se torna imaterial quando foge da alçada biológica; ele pode ser explicado pela psicologia dos torcedores, mas se torna incompleto quando aquilo que acontece em campo escapa à compreensão do fanático; ele pode ser explicado pela ciência, mas faltará algo quando as improbabilidades que não foram medidas acontecem — aí, já não é ciência; ele pode ser explicado até pelo misticismo, mas nunca de maneira a explicá-lo como completo, pois ele também é científico.

O futebol é, portanto, um fenômeno hermenêutico. Ele é tão plural e tão complexo que é impossível explicá-lo totalmente a partir de um princípio apenas. É, também, uma instituição social, como um elemento que toma uma força que transcende a prática e invade a sociedade como um significativo vetor da mesma: ele é operado e opera a sociedade. É uma ciência humana, em que o ser humano não é estático, com alterações de tempo, espaço, ecossistema e condições. E é, finalmente, uma cultura, em que se cultivam dogmas, paixões, ancestralidades, desafios e contradições.

O futebol é o jogo da hermenêutica: nele, existe uma série de interpretações que absorvem o seu próprio éthos e amplificam as suas inúmeras dialéticas existentes: se está presente a tentativa de explicá-lo, também existe em sua configuração a metafísica humana, a essência, a representação simbólica das virtudes e os tensionamentos sociais. Explicá-lo a partir de somente um viés é reduzí-lo somente a um jogo. E, todos sabemos, que ele é muito mais complexo que isso.

Complexidade e hermenêutica

À primeira vista, a complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados; na segunda abordagem, é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações e acasos que constituem nosso mundo fenomenal. A complexidade apresenta-se com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem no caos, da ambiguidade, da incerteza. Daí a necessidade de pôr ordem aos fenômenos. (MORIN, 1991, p.18–19)

Seriam três os eixos essenciais para tentar explicar o que é o futebol: 1) o jogo; 2) o fenômeno; 3) a cultura. Entende-se por jogo aquilo que a gente enxerga dentro de campo. Obviamente, quem está de fora entende menos que aqueles que estão envolvidos com a obrigação de colocar um time em campo para jogar e bem menos que aqueles que tomam as decisões que compõem uma partida. Nisto, talvez o jogo seja a coisa mais fácil de explicar. Você tem as regras, os objetivos, as estratégias e as escolhas. É um planejamento, mas que, como numa batalha — e estamos falando de uma batalha simbólica -, existem movimentos do adversário que não são controláveis. Isto escapa ao controle humano, a qualquer controle de qualquer humano. O que é imprevisível, imponderável, invisível, não é possível de ser medido. Portanto, a primeira explicação que concerne ao jogo em si diz respeito a uma perspectiva humana, entendendo que as aleatoriedades são incontroláveis.

Algumas publicações, como “Moneyball” e “Os Números do Jogo” recomendam essa compreensão através de métricas e que elas devem ser observadas na hora de, por exemplo, montar uma equipe. Trata-se somente de um método. Considerável, mas um método. Os números não explicam o jogo. Eles são um material de apoio. São relevantes e, hoje em dia, fundamentais, mas que servem como um apontamento específico daquilo que está em disputa. Pretender explicar o jogo pelos números é como explicar a desigualdade social pela matemática. Até existem semelhanças entre esses novos analistas e o “pessoal do mercado”, em forma e conteúdo. Mas o futebol, que evidentemente é regido por uma perspectiva capitalista, apresenta uma série de desdobramentos que a frieza da Bolsa de Valores não tem. Futebol é paixão, simbolismo, transcendência, é um fenômeno que remete ao espírito, à alma. O contrário é desumanizar o esporte e, portanto, desmitificá-lo não no sentido de desvelar, mas no sentido de retirar-lhe a condição de evento humano.

Mas o futebol não é um jogo integralmente à luz do que não se controla. Fosse assim, não precisaria de estudo, treinador, atleta, conhecimento. Essa parte, que é a explicável, é profundamente estudada, pesquisada e praticada. A ciência torna-se, assim, um braço amigo na hora de apreender as nuances de um jogo. Ela não é irrelevante, mas ela não explica a partida em sua totalidade, ao menos não a ciência dura, determinista. Existem três dispositivos que, ao serem analisados de forma integrada, podem explicar melhor o jogo: 1) os dispositivos sociais envolvidos no jogo (dispositivo , político, tecnológico, econômico, físico); 2) os dispositivos intrínsecos ao atleta (físico, mental, tático, técnico) e 3) os dispositivos agentes envolvidos no jogo (causa, efeito, circunstância).

No primeiro ponto, a compreensão do que é o futebol caminha junto com o entendimento que se tem sobre sociedade. O futebol não é um evento parado, ele acompanha a sociedade. Todos os dispositivos sociais que reconfiguram o planeta reconfiguram o futebol. Não existe o mundo e o futebol no mundo; o que se tem é o mundo com o futebol no mundo. Ele é, como escrevi, um operador social, como são as instituições. Ele é a sociedade em si, seja em representação, seja em ação. Ele é operado pela sociedade quando se utilizam, por exemplo, softwares para o aprimoramento técnico de um atleta — neste caso, uma intervenção do avanço da tecnologia sobreo jogo; ele opera a sociedade quando vira moda usar camiseta de futebol — neste caso, uma intervenção do futebol sobre a moda, que também é uma instituição social. O futebol é, portanto, um fenômeno social, que é configurado e configura a sociedade, em via de mão dupla.

O segundo ponto diz respeito à prática desportiva. Um atleta não se torna um profissional somente por possuir técnica — talento. Nem Garrincha, que se disciplinou, à sua maneira, para jogar da maneira que jogou. Nem Maradona, que se condicionou, à sua maneira, para jogar do jeito que jogou. Ele agrega outras condições pertencentes ao ser humano (o mental) ou às próprias orientações profissionais (o físico e o tático) para desempenhar o seu papel em campo. Alguém com talento para a música não consegue gravar um disco se não estiver com a cabeça em dia, a voz boa e não cumprir o horário de estúdio; um advogado com talento não vence na profissão se não estiver bem preparado mentalmente e não seguir estratégias para conduzir sua atividade. O atleta atua da mesma forma. É a hora em que ele se desenvolve como multi: é o cara que sabe jogar bola, mas que aprende a jogar futebol se preparando mentalmente, comprometendo-se fisicamente e seguindo as orientações pré-estabelecidas. Mas ele será craque se ele souber utilizar sua técnica a favor da produção de efeitos, em que a finalidade do jogo é, sobretudo, vencer.

Pouco se escreve sobre os efeitos do jogo. É aí que entra a passagem do jogo (1) para o fenômeno (2). O futebol é um jogo de causas, circunstâncias, contingências e desdobramentos que extrapolam o campo de jogo. É o segundo momento de transcendência do esporte. O primeiro é social, não sendo bem uma transcendência, é mais apontá-lo como algo intrínseco à sociedade. No segundo plano, trato como transcendência porque ele impacta naquilo que, como também mencionei, não pode ser dimensionado, que é a paixão. Ele transcende porque ele ultrapassa a formalidade de uma compreensão objetiva — a batalha — ou mesmo subjetiva — o espetáculo. Ele passa a atuar no campo do espírito. O futebol tem uma espiritualidade que rege sua estrutura, chamada vulgarmente de paixão. Ele está no torcedor, ele tem o efeito de produzir uma paixão que lhe tira do sério mesmo se sua vida estiver maravilhosa ou que lhe devolve sorriso mesmo se sua vida estiver uma droga. É quando ele se torna mais que um operador social: ele é um mediador de sentimentos, como são os casamentos, as mortes, as conquistas e as perdas. Torna-se, neste momento, um mediador da nossa própria vida. As rotinas, os cuidados, os rituais e as relações são moldadas pela quarta e pelo domingo. É a alma em estado bruto.

É a hora de voltar aos efeitos. Ao pretender uma análise fria e científica (sic) do jogo, estamos desalmando o futebol. Não é sobre compreender, é sobre esfriar as relações mais íntimas e deliciosas com esse objeto. A pretensão pode gerar um efeito nefasto e que, ainda bem, não deve se confirmar: a de termos um jogo sem alma, sem intervenções humanas. Outro desses analistas sugeriu a ideia de colocar um algoritmo para “auxiliar um treinador de futebol nas substituições, inclusive de acordo com uma estratégia pré-estabelecida. O futebol rejeita o novo, mas quem tem a coragem de tentar vai sair na frente”. De novo, o novo. Imagine o efeito disso para a comunidade do futebol. É a robotização das decisões: não é mais sobre intuição ou sentimento, é apenas sobre métrica e determinação. E não há como explicar um jogo de intervenções humanas sem considerar o humano, suas pluralidades e suas imprevisibilidades. É preciso, enfim, ser generoso conosco:

Por hermenêutica entenderemos sempre a teoria das regras que presidem a uma exegese, isto é, a interpretação de um texto singular ou de um conjunto de signos suscetível de ser considerado um texto” (RICOEUR, 1977, p. 19)

O futebol é um fenômeno de hermenêutica, interpretativo e multidimensional. E, para chegar a esse estágio de compreensão, é preciso abordar sua gênese: ele é, sobretudo, cultura.

Identidade e cultura: a formação do éthos

Recentemente, um desses analistas colocou que “não existe identidade no futebol brasileiro, porque todas as suas formações táticas foram copiadas e nunca criadas”. Há diversos erros nisso, mas eu cito apenas dois: 1) identidade não se dá pela tática, tampouco por técnica, preparo físico ou capacidade mental; se dá por CULTURA. 2) a originalidade, a criação e a revolução não partem do nada, ela é desmembramento de uma outra criação, que vem de outra e assim sucessivamente; tudo é dinâmico, não existe o estado zero no futebol — mesmo quem criou as regras buscou alguma inspiração.

Em 1938, o escritor, jornalista, sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, que cinco anos antes havia escrito o fundamental Casa-Grande & Senzala, um dos maiores tratados sociais sobre o Brasil, foi enviado à Copa de 1938 para cobrir o evento. No Mundial, a seleção conquistou a terceira colocação e, pela primeira vez na história, mostrou ao mundo um futebol ofensivo, envolvente e encantador. Este período é considerado o da primeira era dos supercraques brasileiros. Anteriormente, embora com grandes nomes como Friendenreich, Fausto e Preguinho, não havia essa ideia de geração. A partir de 1938, trabalhou-se fortemente com o pensamento de que o país era capaz de produzir mais que um ou outro jogador de altíssimo nível. Era, afinal de contas, uma seleção com Domingos da Guia — para os mais antigos, o maior zagueiro brasileiro de todos os tempos — e Leônidas da Silva, o maior centroavante brasileiro até os anos 1990, possivelmente. No dia 17 de janeiro de 1938, Freyre publica no Diário de Pernambuco o texto chamado Foot-Ball Mulato:

Um repórter me perguntou anteontem o que eu achava das “admiráveis performances brasileiras nos campos de Strasburgo e Bordeaux”. Respondi ao repórter — que depois inventou ter conversado comigo em plena praça pública, entre solavancos da multidão patriótica na própria tarde da vitória dos brasileiros contra os tchecoslovacos — que uma das condições dos nossos triunfos, este ano, me parecia a coragem, que afinal tiveramos completa, de mandar à Europa um team fortemente afro-brasileiro. Brancos, alguns, é certo; mas um grande número de pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros. Porque a escolha de jogadores brasileiros para os encontros internacionais andou por algum tempo obedecendo ao mesmo critério do Barão de Rio Branco quando senhor-todo-poderoso do Itamaraty: nada de pretos nem de mulatos chapados; só brancos ou então mulatos tão claros que parecessem brancos ou, quando muito caboclos, deviam ser enviados ao estrangeiro. Mulatos do tipo do ilustre Domício da Gama a quem o Eça de Queiroz costumava chamar, na intimidade, de “mulato cor-de-rosa”. […] O nosso estilo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. Os nossos passes, os nossos pitu’s, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar foot-ball, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente […] Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam alas de jogo ou de arquitetura. […] O mulato brasileiro deseuropeisou o foot-ball dando-lhe curvas, arredondados e graças de dança. Foi precisamente o que sentiu o cronista europeu que chamou aos jogadores brasileiros de “bailarinos da bola”. Nós dançamos com a bola. […] O estilo mulato, afro-brasileiro, de foot-ball é uma forma de dança dionisíaca.

O relato de Freyre é o marco zero para a identidade do futebol brasileiro, que não vinha do fraque e da cartola; vinha do samba, da capoeira, do improviso, da cultura afro, que fugia da rigidez europeia e se aproximava de uma dança carnavalesca, com um bailado alegórico e uma ginga única. A partir dos anos 1940, o futebol brasileiro consolidou essa imagem e reafirmou essa identidade com gerações de craques que marcaram nossa história justamente com essas características: Zizinho, Heleno de Freitas, Danilo Alvim, Tesourinha, Ademir Menezes, Jair da Rosa Pinto, Didi, Garrincha, Pelé, Gérson, Rivellino, Jairzinho, Tostão, Zico, Sócrates, Falcão, Careca, Romário, Bebeto, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho, Kaká, Adriano, Neymar. Sem contar tantos outros que não mencionei e os inúmeros defensores craques que tivemos, que se distinguiam dos europeus justamente por representar o estereótipo dessa identidade — e aí vamos de Nilton Santos a Daniel Alves.

O curioso é que a identidade do futebol brasileiro foi transportada para os outros esportes. O basquete, vencedor na virada dos 1950 para os 1960, era mais habilidoso que forte; o vôlei era veloz e inventivo; nossos ídolos nos esportes individuais, como Ayrton Senna, Gustavo Kuerten e Daiane dos Santos, eram criativos e espontâneos. A identidade do futebol brasileiro passou a ser a identidade do esporte brasileiro.

Essa identidade é uma composição cultural, onde o jogo se encontra com outros elementos da cultura brasileira. Nossa ancestralidade desenvolveu, entre outras coisas, uma força mística que não pode ser retirada de nenhum fenômeno social brasileiro. O Brasil é um país ritualístico, isto é, a força dos rituais está presente em qualquer evento social. Retirar isso do futebol ou mesmo condenar tais rituais nesse meio em nome de uma suposta ciência (que, como coloquei, é algo que já morre no próprio conceito) é, no mínimo, rejeitar a própria cultura brasileira, que é muito mais rica e generosa que um mero determinismo tecnológico.

Essa cultura ajuda a explicar o esporte e aí, estamos diante de, possivelmente, a única perspectiva que atinge o campo e a arquibancada, pois é uma força pertencente ao ser humano: do Messi ao Mário, todos somos guiados pela força das culturas, daquilo que os humanos construíram e cultivaram. Essa cultura determina uma tradição. A tradição é uma construção histórica. Dias desses, vi uma postagem dizendo que “quem só sabia sobre o passado do futebol, não entendia nada do jogo”. Entendo a intenção do que foi escrito, uma vez que existe uma espécie de combate ao saudosismo feito pelos novos analistas, que pregam a inovação como carro-chefe de uma suposta modernidade. Quem sabe sobre o passado está manifestando um conhecimento cultural sobre o jogo, que, via de regra, é muito mais poderoso e bonito que saber sobre “o jogo” tão somente. Quem só sabe sobre o “jogo” sabe tanto quanto quem só sabe sobre a “história” ou só sabe sobre “torcer”: é um fragmento de conhecimento diante de algo muito mais complexo e dinâmico.

Você entende de futebol?

Fiz essa pergunta tempos atrás aos meus seguidores do Twitter e obtive 116 respostas. Na maioria, respostas muito boas. Selecionei aqui não as melhores, mas as que eu achei mais próximas da minha premissa:

  • Dominar os diversos aspectos (material humano, relações sociais, psicológicos, administrativos, dentre outros possíveis) que fazem com que a equipe tenha bom desempenho e atinja seus objetivos esportivos.
  • Entende de futebol aquele que o trata de forma séria, busca conhecimento sobre tática, contextos, e história. Comenta de forma mais aprofundada. Ao mesmo tempo, considera a prática, a intuição, o improviso do jogo, afinal futebol não é exato.
  • Eu acho que o conceito é difícil porque a premissa costuma ser mal formulada. O passo fundamental é entender O FUTEBOL. E isso passa por admitir que dominar o futebol é uma utopia. Ele é múltiplo, muda sem parar, foge tanto da lógica quanto da mística o tempo todo.
  • Entender DE futebol é fácil, porém DO futebol é mais complicado
  • Essa pergunta só Albert Camus seria capaz de tentar responder. Futebol, vida, moralidade. Futebol é um fenômeno social que supera as quatro linhas.
  • Entender é muito amplo. Acho que saber enxergar o contexto geral, sacar de gestão desportiva e ter consciência dos movimentos que acontecem dentro do campo resume bem.
  • O que define o “entender”: conhecimento, entendimento e didática? Acho que essa é a grande questão
  • É atingir resultados, saber detalhar como e ser reconhecido por isso. Sejam resultados dentro ou fora do campo, seja reconhecimento dos colegas, da torcida ou dos amigos do bar.
  • Entender de futebol è saber que a cultura de Frestas transforma o povo e unifica paixões.
  • É explicar o inexplicável
  • Conhecimento histórico. Evolução tática do futebol. Diferenças técnicas de jogadores e equipes. O que fez/faz a diferença nos grandes campeões e nos perdedores inusitados. Alguma noção do psicológico e vestiário. Sem ter razão, apenas ter conhecimento e gosto pelo debate
  • O futebol é o espelho da vida, é um esporte complexo, desejo, economia, paixão, razão e emoção, ciência versus magia, intuição pura. Se compreender tudo isso não serei humano, serei um semi deus grego.

Em todas essas respostas — publicadas na íntegra aqui — , os componentes presentes são: multiplicidade, aleatoriedade, cultura, dialética, humanidade. Gostei dessa última, de Cristiano Carvalho. O futebol é exatamente isso: a dialética entre a ciência e o espírito (embora não sejam “inimigos”), entre razão e emoção, entre desejo e racionalidade. Um espelho da vida, como colocou o Cristiano. Não diria que é um espelho, mas ele é parte da vida, como são nossas relações, nossas ambições e nossas contradições. E não há como compreender tudo isso.

Quando um deslumbrado analista relativizar a sua compreensão sobre o jogo — e eu já fiz isso muitas vezes, de idiota que sou — , não acredite. Ele fará isso por um certo narcisismo de acreditar que a sua ótica sobre o esporte é a única capaz de explicá-lo. E está muito longe disso. Vou aplicar esse pensamento em dois casos, brevemente.

Um clube contratou um jogador com base nas suas potencialidades e no que ele oferece desportivamente. Consultou os números, o serviço de análise, software e uma que outra consulta. Chegando ao resultado, estava diante do jogador que o time precisava. Entretanto, quando se apresenta, o atleta não é escalado. Com dificuldades em se entrosar, falta de adaptação, timidez e solidão, não consegue desempenhar nos treinamentos uma boa performance. E isso pode acontecer com qualquer jogador, porque são seres humanos. Existe um novo ecossistema, um ambiente completamente diferente, as angústias pessoais, as dificuldades humanas. Só um processo humanizado fará com que o jogador renda. E isso, nenhum software oferece.

Pai Santana foi um lendário massagista do Vasco, cujo falecimento completou uma década recentemente. Além de sua atividade como funcionário do Vasco, ele também era um pai de santo de mão cheia. Dez entre dez jogadores que atuaram pelo Vasco no período em que o profissional esteve lá o adoram. Não é para menos. Pai Santana representava o lado místico do futebol, ganhando a confiança do boleiro e passando uma mensagem que é presente na nossa cultura: o futebol é também um grande exercício da fé.

Os analistas que supostamente entendem “do jogo” renegam a história e o misticismo. Essa abordagem parece-lhes saudosista e negacionista. O que não entendem, de fato, é que seu próprio conceito sobre o que é a ciência é superficial e preconceituoso. As ciências exatas operam como um material de apoio no mundo do futebol. O que pretensamente pode explicá-lo são as ciências humanas, onde nunca há uma definição por completo sobre o objeto analisado.

É possível dizer então que eles não entendem de futebol (e a pergunta foi feita exatamente dessa forma)? Não, eles entendem. Mas eles entendem de parte do fenômeno. E entendem de acordo com uma interpretação. O torcedor entende de futebol? Claro que sim! Com a sua interpretação, que é passional. Os jornalistas entendem de futebol? Também com um recorte, voltado para o valor-notícia do evento. Mas nenhum destes conseguiria entender completamente o que é o futebol. Ele é uma totalidade, que só o pensamento complexo daria conta, mas com anos e anos de estudo. É como pretender entender o que são as culturas milenares, embora o futebol seja uma cultura secular. Entretanto, é tão forte que sua proporção já pode ser encarada como um fenômeno cultural que abrange tanta coisa que dizer que o jogo pode ser compreendido por um prisma A ou B é reduzir seus impactos. O futebol não é explicado pelos números, pelos analistas e nem mesmo pela ciência. Não é explicado pelo misticismo, pela paixão e nem mesmo pela história. Ele, como fenômeno hermenêutico, pode ser interpretado a partir desses recortes, de acordo com a conveniência do interlocutor. Mas jamais decifrado por inteiro.

Ao longo da história, filósofos publicam obras tentando entender o sentido da vida. Você pode adotar as diversas perspectivas, de Platão a Nietzsche, de Aristóteles a Sartre, de Spinoza a Marx, para tentar explicar qual a razão da nossa existência. Nenhum deles soube definir qual o motivo de estarmos aqui. O que eles fizeram foi adotar um viés, uma particularidade de seu olhar sobre o mundo para tentar atribuir esse significado. Se o futebol é o espelho da vida, ou melhor, se o futebol é parte da vida, como definir que alguém consiga, através de uma perspectiva — e, às vezes, das mais rasas — , definir o que é o futebol. Se o que acontece em campo já é um processo hermenêutico, os seus desdobramentos são passíveis de diversos olhares que escapam a uma análise, especialmente se ela for feita por software.

O futebol é, portanto, um evento do espírito, da alma, do homem. Entender o futebol em sua totalidade é um desafio que nem os maiores gênios da humanidade conseguiriam fazer. Porque debruçar sobre essa multiplicidade é o mesmo que se debruçar em atingir uma resposta válida para o sentido da vida. Renegar qualquer perspectiva e assumir uma frente alegando que esta abordagem vai explicar o que acontece num jogo é um grande preconceito contra a própria cultura do esporte. Como então explicar a totalidade do jogo? Simples, não tenha essa pretensão. Você vai conseguir, no máximo, é ser ingênuo ou arrogante. Ou as duas coisas. E, se você tiver essa pretensão e conseguir, parabéns, você está pronto para fazer o que nenhum filósofo na história da humanidade conseguiu: ao explicar o futebol em seu todo, você explicará a vida em seu todo. Porque ele é isto: uma reprodução da própria existência.

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Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.