Uma Copa do coração

Carlos Guimarães
6 min readDec 19, 2022

O Mundial do Catar termina com uma lição que vamos levar para sempre: futebol não se acompanha (somente) com a razão

Foto: Matthew Ashton — AMA/Getty Images

Logo depois de Brasil x Croácia, tentei entender o que tinha acontecido com a seleção brasileira de acordo com uma lógica que minha profissão pede. Na minha interpretação racional, era preciso traduzir o domínio brasileiro em finalizações, as substituições equivocadas, o meio-de-campo perdido, o inacreditável contra-ataque croata e as escolhas dos batedores na decisão por pênaltis. De forma racional, é possível dizer que o Brasil perdeu por erros pontuais no campo de jogo.

Sinto até agora a derrota brasileira, tendo, nesse período, todos os sentimentos possíveis numa hora dessas: tristeza, consternação, tentativa de racionalizar o sentimento, negação da razão, raiva, MUITA raiva, até chegar ao ponto da incredulidade. Só faltavam 4 minutos e a classificação mais em nossas mãos na história das eliminações brasileiras escapou. Por que isso aconteceu? Ora, o futebol não tem todas as explicações do mundo, mas a gente pode chegar perto: ele é para ser sentido e não explicado.

Quando deixo de lado essa tentativa inócua de racionalizar uma coisa que realmente me atinge, as respostas parecem pipocar de maneira magicamente fácil. Acompanhei toda a preparação brasileira, asstindo a todos os jogos, trabalhando em 90% deles e conversando com muita gente envolvida nesse processo. De maneira entusiasmada — porém racional, é importante frisar isso, esse é o plot twist do texto — , entendi que havia uma seleção bem preparada para o Mundial. Era uma conjunção de fatores que colocava o Brasil como um dos favoritos: Eliminatórias perfeitas, uma geração buscada no momento certo, uma produção de encantamento vista nos últimos jogos antes da Copa. Era o melhor futebol possível, talvez o melhor desde 2005. Como perdemos?

Passamos para a final da Copa, a partida fantástica entre Argentina e França e o título de Messi. Passamos aos poucos a abandonar a razão e enverdedar pelas veias abertas da poesia do futebol. O sobrenatural de Almeida de Nelson Rodrigues, que nos presenteou com a maior final de todos os tempos, o furacão Mbappé e a consagração de Messi. Como explicar racionalmente o que vimos em Doha neste domingo, 18 de dezemrbo de 2022? Tudo que era previsível se desmantelou com o empate francês, com a prorrogação eletrizante, com a performance LUNÁTICA de Emiliano Martínez, com o destino encontrando o estereótipo e escrevendo a conquista argentina como uma letra de tango, mas com final feliz. Foi uma final desesperada, jogada à última instância da sanidade, que flertou com a tragédia portenha, que evocou as narrativas que fazem o futebol valer à pena: uma história de superheróis, de improváveis heróis, de valentes escudeiros, de vilões improváveis, de perfeições anteriores demolidas com requintes de crueldade por um roteirista sorridente, que se deliciou com viradas de placar, mudanças de narrativas e um final perfeito que simbolizou perfeitamente o que é o futebol no momento.

A frase não é minha e eu queria que fosse: “Se a Copa foi conquistada por Messi, ela foi escrita por Maradona”. Diego diós, o maior personagem da história do futebol, o mais humano e errante de todos, cuja vida foi um tango que se balançava entre a genialidade em campo e a fragilidade na vida, é o roteirista dessa fábula. Eis o destino aprontando novamente: foi a primeira Copa de Messi depois da morte de Maradona. É como se Diego precisasse deixar esse plano para, espiritualmente, deixar Messi livre para cumprir essa missão. Em carne viva, Maradona não poderia incorporar. Desencarnado, sua alma penetrou em corpo e mente dos argentinos campeões. De quebra, foi sacana; resolveu emprestar um pouco da sua tragédia para contribuir nas linhas que contaram o título argentino.

Tudo que aconteceu no Catar foi feito de uma forma tão impactante em termos de ilustração e simbologia que é difícil acreditar. Fosse antes da Copa, não conseguiria imaginar uma passagem de bastão tão verdadeiramente legítima como aconteceu na Copa. Messi, 35 anos, quase incontestável; ao gênio, faltava uma Copa. Azar da Copa? Não, a Copa não gosta dessas sutilezas. Não se tem azar três vezes. Primeiro, com Puskas e o revolucionário time da Hungria. Depois com Cruyff e a Laranja Mecânica que mudou o futebol. O terceiro azar da Copa não foi com o time de 1982 porque havia algo maior nessa roleta que não parou de girar. Se era uma obsessão de Messi ter a Copa, a Copa também queria ter Messi. Era uma questão de justiça. Ou, como são argentinos, de vida ou morte.

A Copa teve Messi. Teve na sua maior plenitude como o 10 da Argentina. Ele fez gols em seis dos sete jogos, foi vice-artilheiro da Copa, melhor jogador da competição, comandou um time de operários-padrão, assim como Maradona fizera em 1986. Bailou com o melhor zagueiro da Copa, consagrou o jovem companheiro de ataque, divertiu-se com o fiel escudeiro Di Maria, companheiro de 13 anos de seleção. Messi deu à Copa o que a Copa queria: ele, somente ele. Às vezes, os amores se correspondem de forma tardia.

E o Brasil? Faltou ao Brasil imaginário, que insistentemente era colocado em segundo plano diante de uma obsessão pela preparação e, logo, pela racionalidade. Uma comissão técnica cara, um staff de 74 pessoas, um time de analistas de primeiro nível, um conceito que propunha complexidades como ataque posicional, lateral defensor, zagueiro construtor, simetrias muito bem feitas que blindaram o time brasileiro de qualquer loucura. Sobrou ao Brasil cuidado com a logística, com a preparação, com zelo ao ciclo, com a gestão de grupo e faltou ao Brasil uma transcendência que marcou todos os títulos brasileiros. Faltou ao Brasil o atrevimento de um Pelé de 1958, a incorporação cabocla de um Garrincha de 1962, a força interna de um Jairzinho de 1970, a inconsequência de um Romário de 1994, a volta por cima de um Ronaldo de 2002. Faltou ao Brasil a construção de uma narrativa que fizesse com que fizesse dessa seleção merecedora do título. Faltou ao Brasil o sobrenatural de Almeida que sobrou em Messi.

É claro que essa explicação causa em mim um dilema. Eu tenho minha interpretação racional sobre o que houve com a seleção e conseguiria explicar as razões do título da Argentina. Mas, talvez, eu não queira. Pela primeira vez desde 1994, quando eu não era jornalista, senti a Copa de um jeito que me condicionara a não sentir no período em que trabalhei nela. Foi um processo de desautomatizar a relação com o futebol. Ao invés de ver o jogo com caderninho, prestando atenção em sistemas táticos, ler os analistas, buscar conteúdo sobre os jogos, decidi me levar pelo coração. Depois do título da argentina, me arrepiei e quase chorei. Não estava preocupado com aquilo que eu teria que dizer sobre esse Mundial. Ou, de propósito, procurei buscar nas minhas raízes, da minha essência, aquilo que move, inclusive, a minha vontade em ser jornalista esportivo.

Em 2022, fiz as pazes com a paixão. Eu achava que ela contaminava a análise. Talvez ela realmente contamine. Mas a vida é curta demais para ser somente pensada; ela precisa, volta e meia, ser sentida. Só o coração sente. Uma Copa do Mundo só ocorre de quatro em quatro anos. Tenho todo o resto do mundo entre uma Copa e outra para analisar. Porém, que os donos da razão me permitam, quando ela chegar, eu vou novamente me apaixonar. Viver a Copa com o coração. Acreditar que o roteirista do Mundial foi Maradona. Desprezar as métricas, as táticas e as explicações para somente sentir, como Messi fez. A vida é muito preciosa para ser levada somente com o cérebro. Às vezes, é preciso coração. Que seja de quatro em quatro anos. Porque a Copa também é a vida.

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Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.