Para que serve o comentarista esportivo?
Uma proposta de reflexão sobre função, estilo e empatia
Depois de dois anos de pesquisa, lendo conceitos sobre o que era o comentarista esportivo, valendo-se de dados, informações e uma certa dose de senso comum que a rigidez de uma dissertação exige, escrevi que o comentarista esportivo é o “responsável pela tradução dos acontecimentos do jogo por diferentes aspectos, com filtro jornalístico que serve como base para sua análise, levando em conta, por fim, seus juízos de valores pessoais (sua opinião)” (p.85). Em suma, defini o comentarista como uma espécie de mediador entre o que acontece em campo e o que o público recebe. Em outras palavras, nada mais é do que um intérprete dos acontecimentos.
O rigor do texto acadêmico restringe algumas percepções e intuições. Exige-se uma comprovação, um apego à ciência que deixa um tanto quanto inflexíveis algumas situações. Em contrapartida, o texto é respaldado por uma base, uma pesquisa, um trabalho científico. As ciências humanas, entretanto, mais deixam interrogações, dúvidas e reflexões. As subjetividades das relações humanas e a dinâmica da comunicação, que não é estática, fazem com que estas comprovações sejam, volta e meia, questionadas. Porque dois mais dois não somam quatro em alguns casos. Neste sentido, meu objetivo aqui é provocar uma reflexão filosófica que uma pesquisa de mestrado em comunicação não permite. Pretendo, também, afrouxar essa rigidez, tendo em vista novas observações sobre o papel do comentarista esportivo. Por fim, proponho igualmente uma espécie de contemplação existencial sobre as finalidades do comentarista. Simplificando, este texto nada mais é do que uma proposta de ensaio sobre o comentarista esportivo, jogando para a discussão as perguntas básicas de “o que somos? ”, “para que servimos? ” e “o que o público quer da gente?”.
Tais questionamentos surgiram após uma intensa e exaustiva pesquisa nas redes sociais, que se juntaram a fatos que ocorreram neste início de temporada de 2019. Um deles veio à tona com os jornalistas Gustavo Villani e Carlos Cereto no Sportv. A pergunta foi: “O jornalista esportivo deve revelar seu time do coração? ”. Esta pergunta é uma espécie de tabu na imprensa brasileira. O público votou, em sua maioria, pelo SIM, ou seja, que o jornalista esportivo deve revelar seu time do coração. Já escrevi sobre isso, de que há uma demanda do público para que o comunicador exponha suas crenças, posições políticas e, evidentemente, time de futebol. É um fenômeno a ser melhor observado. É uma espécie de busca por humanizar o comunicador, entender suas verdades, aproximar as relações. Eu não acredito que o público esteja preparado para receber uma crítica ou um elogio e desassociá-los dessa predileção. É minha primeira hipótese para tentar responder às perguntas que fiz anteriormente. Mas, primeiro, é preciso desfazer uma das tantas premissas que norteiam o imaginário jornalístico (e da audiência em si): a do público-alvo.
O público-alvo: distinções e similaridades
O conceito de público-alvo vem da publicidade. Ou, ao menos, foi apropriado pelos publicitários. Entre o que li, a grosso modo, pego o que Breno Magalhães (especialista em marketing) define, de modo sintético e sem o rigor de autores que um trabalho científico exige (relembro que este texto é um ensaio empírico, intuitivo e sem fins acadêmicos, o uso eventual de ABNT é só um capricho estilístico):
“Público-alvo trata-se de um grupo específico de consumidores ou organizações que compartilham um perfil semelhante e por isso devem ser o foco das ações de marketing e vendas da sua empresa, uma vez que estão mais dispostos a adquirir os produtos/serviços que ela oferece. ”
A obviedade do conceito é, de certa forma, uma definição de mercado para explicar que o público-alvo é um conjunto de pessoas com os mesmos interesses. Levando para o mundo do futebol, em especial o futebol brasileiro, é possível, de maneira simples, dizer que o público que acompanha o esporte no Brasil é composto pelo torcedor de futebol. Assume-se, aqui, também, a ideia de que o futebol transpõe somente uma preferência. O Luís Henrique Rolim, historiador e pesquisador, participou recentemente do meu programa na Rádio Guaíba. Ele disse algo que foi fundamental para despertar, entre outras coisas, a ideia central para escrever esse texto. Rolim prepara um artigo científico sobre a sessão do obituário nas páginas dos jornais. Em sua pesquisa, constatou que o time de futebol da pessoa é ilustrado em praticamente todas as publicações. Nome, idade, naturalidade, profissão, vida familiar, características marcantes e time de futebol. Rapidamente, vamos ao Twitter e identificamos a mesma sequência. Além de ser advogado, pai de dois filhos e leitor de García Márquez, ele também é gremista ou colorado.
O time de futebol assume, imediatamente, uma função identitária para o torcedor. Faz parte da sua definição. É superior a uma característica física ou moral. É algo que se torna imediatamente intrínseco, que faz parte de sua essência como ser humano. É algo tão seu quanto suas habilidades, suas credenciais ou seus gostos. É, portanto, mais que uma preferência. Logo, classificar o torcedor de futebol somente como, de fato, um torcedor, na acepção da palavra, é reduzir um aspecto inerente ao seu ser, à sua identidade.
O processo de identificação se relaciona com a necessidade de pertencimento que o ser humano busca. Entretanto, tem-se que, por vezes, o pertencimento seja muito mais uma questão de busca ou de devir do que a conexão entre o ser e o clube de futebol. Você não pretende ser torcedor de uma equipe. Você é torcedor da equipe. É uma relação que transcende, por exemplo, as paixões que temos na nossa vida, que, lá pelas tantas, também se tornam uma busca por um (a) companheiro (a). Em boa parte dos casos, você não sabe porque gosta mais do Grêmio do que do Inter (e vice-versa) e não sabe como passou a entender o Grêmio ou o Inter (e vice-versa) como um rival a ser, em casos mais extremos, odiado. É uma situação normal da vida. Você entendeu que precisa torcer a favor de um e contra o outro, sem muita doutrinação quanto a isto. Ou seja, é uma relação que evoca as mais profundas raízes do comportamento emocional do ser humano. Uma relação em que, talvez, não tenha precedentes, similaridades ou casos que vão superá-la.
Portanto, como estratificar o público do futebol em categorizações que vão ao encontro do que se tem como público-alvo? Em sentido amplo, apenas uma categorização seria possível no futebol, que é uma divisão por interesses similares através dos clubes do coração. É claro que nem todos têm a mesma leitura sobre o que é o esporte. Mas, da mesma forma, todos têm uma percepção que subverte toda essa ideia de aceitar diferentes públicos-alvo dentro da análise esportiva: comemora-se quando o time ganha e lamenta-se quando o time perde. Esta é uma regra absolutamente universal. O público do futebol não é um público analista. É um público torcedor. Mais que isso: é um público que incorpora o espírito essencial do esporte como competição e adiciona o seu clube preferido como um aspecto seu.
Todavia, é preciso ressalvar que existem interesses diferentes numa análise esportiva. Afinal de contas, existe uma análise correta? Existe uma maneira precisa de interpretar o futebol para o público? É possível dizer que todas as pessoas que acompanham futebol querem o mesmo tipo de análise? Como haver empatia com tantas cargas de valores distintas, tantas pessoas diferentes e tantas necessidades que o fã de futebol atribuem a quem analisa? Chego à minha hipótese central, que alarga um pouco aquele conceito inicial de que o comentarista é somente um intérprete dos acontecimentos.
Máxima de McLuhan: os meios são a extensão do homem
O clássico de Marshall McLuhan (1964) ilustra perfeitamente o que tenho como hipótese central para responder às minhas perguntas sobre o que o público quer dos comentaristas. “Quando uma sociedade configura-se baseada no apoio ofertado por alguns poucos bens, tende a aceita-los como elos sociais, transformando-os em partes intrínsecas na cultura.” (p.21–37). McLuhan defende que os meios eletrônicos funcionam como se fossem um prolongamento dos sentidos.
“Todos os meios agem sobre os homens de modo total. Eles são tão penetrantes que suas conseqüências pessoais, política, econômicas, estéticas, psicológicas, morais, éticas e sociais não deixam qualquer fração de nós mesmos atingida, intocada ou inalterada. O meio é a ‘massa-gem’. Toda compreensão das mudanças sociais e culturais é impossível sem o conhecimento do modo de atuar dos meios como meio ambiente.” (McLUHAN e FIORE apud DEL BIANCO In: MEDITSCH, 2005, p.153).
Um prolongamento dos sentidos também é um prolongamento de suas crenças, valores e preferências. Há, em contrapartida, uma imensa procura por pessoas que pensam o contrário, pelo comunicador que não fornece uma relação de empatia e que, pelo contrário, causa, em último caso, repulsa. Estas pistas desobstruem um pouco aquilo que questionei, dando um sentido mínimo à razão de existir do comentarista. Entretanto, não é regra. Mas serve como um primeiro passo daquilo que pretendo mostrar. O comentarista esportivo é, num ambiente onde o público possui autonomia de valor sobre o jogo de futebol, um elemento que valida a sua opinião. Quando a opinião é validada, funciona como uma extensão de si, do seu pensamento. Quando a opinião é contrária, opera como um elemento que será rejeitado ou, no mínimo, alvo de vistas grossas.
Resumidamente, o público quer é se enxergar no meio de comunicação. Esta resposta é bem mais satisfatória do que atribuir as diferenças de análise ao senso comum do público-alvo ou às falácias da “análise bem ou malfeita”. Lendo minhas interações no Twitter, percebi que dezenas de seguidores passaram a me considerar um “mau comentarista” depois de uma opinião minha que não validava aquilo que eles pensavam. Em termos bem simples, eu era bom quando concordava com um ponto de vista. Eu passei a ser ruim quando um outro ponto de vista era contrário. É a mais pura, bruta e incontaminável relação de empatia. É uma conexão que existe como um fator de amplificação do pensamento do seguidor. Creio que isto responde a um questionamento filosófico-existencial que tanto me assola: comentarista bom é comentarista igual a mim.
Mas é só isso que o público espera da gente? Por que sua opinião, que é algo próprio, intransferível e fundamentado precisa ser validada por um jornalista? Ele é visto como um especialista? Ele é visto com um sentido de autoridade sobre o assunto? Não raro, a máxima de que um jornalista não é apto para uma opinião porque “nunca jogou bola” surge nas nossas timelines. Como que um cara que não tem vivência profissional em seu objeto de análise pode ter domínio sobre o mesmo objeto?
O comentarista de futebol: o que o público acha que somos
O resultado da tese de doutorado de Gisele Dotto Reginato (2016) indica que as finalidades do jornalismo são: a) informar de modo qualificado; b) investigar; c) verificar a veracidade das informações; d) interpretar e analisar a realidade; e) fazer a medição entre os fatos e o leitor/ouvinte/telespectador/seguidor; f) selecionar o que é relevante; g) registrar a história e construir a memória; h) ajudar a entender o mundo contemporâneo; i) integrar e mobilizar as pessoas; j) defender o cidadão; l) fiscalizar o poder e fortalecer a democracia e m) esclarecer o cidadão e apresentar a pluralidade da sociedade (p.217–218). A pesquisa foi feita entre jornalistas, gestores e leitores (estendo para audiência ou público, como forma de atingir outros meios). O grifo dos itens (d) e (e) são de minha autoria justamente para destacar aquilo que vai ao encontro do que pesquisei e do conceito que cheguei sobre o comentarista esportivo: somos intérpretes da realidade e mediadores entre o fato e o público. A questão-chave, que bagunça esta lógica, é quanto ao fato em si, que é o jogo de futebol: para que um intérprete se há acesso direto ao acontecimento? Para que uma mediação se a comunicação entre o jogo e o torcedor é direta?
A hipótese de que somos um elemento validador de suas opiniões é efeito de uma produção cultural de como o público entende a imprensa. Através dos anos, tomou-se a imprensa como o único canal confiável e tecnicamente autêntico para produzir uma transmissão de informação, opinião ou interpretação. Só que os tempos são outros. Certa vez, questionei meus seguidores sobre o que eles buscam nos meios de comunicação. As três respostas são impregnadas de senso comum sobre o trabalho do jornalista: a) informação; b) opinião do especialista e c) imparcialidade dos fatos. Escrevi um artigo científico mal resolvido sobre imparcialidade, com um estudo de caso que me derrubou tempos depois. Pretendo publicá-lo quando tiver tempo. Portanto, como é um caso mais amplo, fico com o capítulo que escrevi sobre objetividade, em que coloco que a imparcialidade é método e não objetivo, algo que mais protege nosso ethos do que uma prática, por vezes mais um mito que um fato (p.78–79). Se eu escrevo que somos intérpretes, como constituir objetividade numa interpretação? Mesmo que alguns juram não acreditar, ainda somos seres humanos.
O item (a), a informação, é a razão de existir, portanto, é, de fato, o primeiro ponto que um leitor busca ao abrir o jornal, que um seguidor procura no seu feed ou que um ouvinte busca ao ligar o rádio. O item (b) ainda ronda o imaginário do torcedor, mas em menor proporção. Discute-se muito essa questão do especialista. Semanas atrás, num churrasco, um convidado falava sobre seu time e, constrangido, me procurava para saber se estava certo, porque, afinal de contas, eu era o especialista. Minha resposta surpreendeu. Disse que ele poderia saber tanto quanto eu sobre futebol, mas que a interpretação sobre aquilo que ele entende do assunto poderia ser diferente da minha. Porque, dentro da sua própria compreensão, ele chega a resultados diferentes dos meus, dentro da minha compreensão. Via de regra, é inútil nos achar especialistas. Somos, de fato, intérpretes. Mas por que eu tenho que interpretar para os outros? É onde entra a questão técnica, que é o primeiro ponto para entender, de uma vez por todas, o que somos: quem cobre futebol não está ali porque sabe mais de futebol que os outros; está ali porque aprendeu uma série de técnicas em sua profissão que lhe dão o sentido de autoridade para identificar o que é ou não notícia, como ela pode ser repassada, como se dá uma apuração e como se fundamenta uma base para prestar uma opinião. Todos têm opinião e todos têm seus juízos de valor. Mas nem todos têm a técnica. Embora muitos (de fora e de dentro do jornalismo) vão discordar deste pensamento, é a situação mais particular que me ocorre para separar os balcões.
Ainda assim, não há resposta para a pergunta central, que dá título ao ensaio. O melhor é sempre guardado para o final. Apressadamente, respondi porque um comentarista é considerado bom e outro é considerado ruim. Mais do que por interesse, é uma questão de ter o seu ponto de vista validado. Mas, em épocas de proliferação das análises mais específicas e de uma linguagem mais rebuscada, é somente empatia que aproxima público e profissional? Não, não é público-alvo. Classificarei como firula estilística.
A questão do estilo: porque é muito mais sobre forma do que sobre conteúdo
Minha relação com os analistas táticos já foi melhor. Como pesquisador da análise esportiva (mais que do futebol), entendo que um dos maiores erros de quem comunica é vestir a carapuça da autoridade. A comunicação não tem sentido pedagógico. Não estudei sobre pedagogia, mas também acredito que o processo educacional não pode funcionar no sentido unilateral. Também creio que o futebol é tão multifacetado que não produz verdades absolutas. O estudo nas Ciências Humanas me ensinou uma coisa básica: nada é, tudo é fragmento de uma percepção arranjada através de interesses, crenças, valores e com altíssima carga autoral. A percepção que eu tenho sobre comunicação é diferente daquela que outra pessoa tem. O mesmo funciona com o futebol. Aquilo que eu vejo relevante para o jogo é diferente daquilo que outro vê. Não tem nenhuma relação com público-alvo. É uma relação empática mesmo. Disfarçar um conteúdo subjetivo (e, de certa forma, quase tudo no futebol é subjetivo) com um formato pretensiosamente pedagógico, sem efeito, base ou cognição para isto é firular sobre estilo, mais que apresentar uma doutrina. Não à toa, um projeto científico precisa ter uma base teórica, um precedente, uma série de “conforme fulano”, “de acordo com”, “segundo cicrano” etc. Porque ciência que se preze apresenta versões, interpretações e antecedentes que alicerçam uma pesquisa, um pensamento ou um novo conceito. Nem os grandes pensadores forneceram verdades absolutas, não seriam os novos analistas táticos tão revolucionários assim para produzir decretos conceituais imutáveis. Soa ingênua a pretensão.
Quanto à linguagem empregada, é mero recurso estilístico. Como a minha, de certa forma, também é. Os processos comunicacionais são múltiplos, mas tem uma regrinha que funciona perfeitamente para qualquer diálogo: para receber a mensagem, o emissor precisa facilitar. Claro que recorrer a termos tradicionais do futebol gera um certo incômodo em quem busca o sentido da autoridade pelo discurso. Discurso é poder. Quando você tem a intenção de “ensinar futebol”, mostra uma relação de poder sobre “quem aprende sobre futebol”. É um discurso mais batido do que o cara da rebimboca da parafuseta, para não dizer que é a mesma coisa. Esses tempos, um médico reclamou que a análise esportiva estava muito técnica e citou o óbvio: uma dor de cabeça é uma cefaleia para o colega e uma “dor de cabeça” para o paciente. É o erro cometido pelos novos analistas táticos: afinal de contas, o papo é entre eles ou com um público que se interessa pelo assunto?
Claro que a justificativa óbvia se relaciona ao fatídico “público-alvo” em questão. O problema é que não sabem o conceito básico de comunicação e do que é público-alvo. Público-alvo, que nem deveria ser mencionado, porque não é o caso, não são os que falam, andam ou agem como eu. É terrivelmente desonesto desconsiderar que pessoas que acompanham futebol querem dispor deste conteúdo. Mas as pessoas que querem “aprender” (sic) sobre tudo isso precisam, além de boa vontade, vencer a arrogância, os dialetos e o famigerado discurso da autoridade intransigente para vencer esta barreira. O conteúdo, entre nós, não é tão complicado assim. Eu tenho convicção que qualquer pessoa que entende minimamente de futebol vai compreender estas questões mais específicas. O apego é em relação à forma, que maquia um conteúdo por vezes óbvio. Você complexifica a linguagem, rebusca a fala e esculpe o vocabulário para ter o tal sentido de autoridade sobre um objeto que no fundo você domina menos do que os outros pensam. Independente disso, se houvesse uma fresta na janela para que o público em geral pudesse enxergar, não haveria problema. Mas a janela está fechada para o clubinho.
Logo, a retórica se relaciona com um mero estilismo que não permite compreender que esta é apenas mais um tipo de análise possível. Da mesma forma que comunicadores mais populares possuem seus estilos. Da mesma forma que, naquele processo de empatia existente, é possível um seguidor se identificar com um comentarista que, por exemplo, faz às vezes de torcedor. Isso contamina menos a análise do que pensamos. É apenas um ponto de vista, uma faceta possível na complexidade da análise esportiva. É só estilo. Não é uma regra.
O papel do comentarista: intérprete de uma realidade acessível
Se o comentarista é um intérprete, se o estilo de análise é escolhido por estilo, se o profissional é considerado bom ou ruim por exercício de empatia, a pergunta está respondida? Parcialmente. Tem uma questão que desorienta essa lógica. Fosse tão simples assim, poderíamos dizer qual o nosso clube de coração, certo? Se você está num ambiente jornalístico e tem isso como profissão, é natural pensar que aquilo que você faz enquanto profissional supera qualquer risco de contaminar sua opinião por uma preferência, certo? Errado. Como mencionei, o futebol atua como uma expressão identitária do torcedor. Como também coloquei, os profissionais funcionam como extensões dos sentidos do torcedor. Ou seja, o torcedor acredita que a pessoa tem determinado pensamento porque ele age assim. Porque seus amigos agem assim. Porque aprendeu que o futebol é, acima de tudo, uma manifestação de torcida. Porque o futebol é, sobretudo, um gigantesco manifesto emocional, em que tudo é possível, menos racionalizar. Quando há uma intenção de colocar as coisas no preto e no branco, existe uma desconfiança sobre isto. Não se racionaliza a paixão.
A realidade se apresenta no campo do futebol da seguinte forma, em geral: o meu time contra o outro. É inevitável que o torcedor pense que em campo está o time do comentarista contra o outro ou o time que não é do comentarista contra o outro. O torcedor imagina impensável desassociar a paixão:
“As pessoas podem mudar de tudo: de cara, de casa, de família, namorada, religião, de Deus. Mas tem uma coisa que não se pode mudar, Benjamín. Não se pode trocar de paixão.”[1]
Você pode trocar de companheiro, de sexo, de partido político, de religião. Mas dificilmente você troca de time de futebol. Como que o público vai acreditar que um jornalista está ali emitindo um juízo de valor completamente desapegado daquilo que uma vez foi sua paixão? Recorro mais uma vez àquilo que chamo de contrato subliminar com a nossa profissão. Existe algo, para o jornalista esportivo, que supera esta paixão: quando entramos na profissão, sabemos as regras, sabemos o que precisamos fazer para vencer na profissão e tornarmos melhores profissionais. A regra exige o cumprimento rigoroso disso: a análise tradicional de futebol não é só um ponto de vista racional sobre um acontecimento. É, na imprensa brasileira, uma questão de sobrevivência de acordo com o que foi constituído historicamente. Evidentemente, há situações em que a racionalidade existe mesmo com a clareza sobre esta paixão. Produz um outro tipo de empatia. Mas, via de regra, ainda não vejo o público preparado para saber disso. Para muitos, somos torcedores com microfone. A verdade é bem menos sedutora: é só o nosso trabalho.
Considerações finais: e a pergunta aquela?
O comentarista de futebol é, portanto, um intérprete de uma realidade que bate ou não com aquilo que o torcedor enxerga. A realidade é passível de subjetividades e interpretações. Existem verdades absolutas, mas elas se relacionam muito mais com os objetos do que com os sujeitos. Uma bola é uma bola, mas quem jogou mais, Romário ou Ronaldo? A bola entra quando passa a linha, mas Neymar é craque ou produto de mídia? Lateral se cobra com as mãos, mas Messi superou Pelé ou não chegou ainda a ser um Maradona? Observem, não há números, mapas de calor, estudos, pesquisas ou porcentagens que respondem a estas perguntas de maneira definitiva. Porque o jogo é subjetivo. Porque ninguém tem condição de responde-las com a segurança irrestrita de jamais serem desmentidos. Porque a minha visão é única, particular, assim como a de qualquer torcedor, profissional ou fã do esporte.
Mas se cada um tem a sua visão, por que eu preciso de uma outra? Porque há uma definição cultural de que a nossa opinião precisa ser validada. As redes sociais são exatamente isto. Porque o papel da imprensa é, também, de forma cultural, ser uma espécie de autoridade sobre os acontecimentos. Porque eu preciso ouvir o que o PVC vai falar sobre a seleção. Porque eu sempre ouvi o que o Lauro Quadros e o Ruy Carlos Ostermann falavam do meu time. Porque é cultural, habitual, uma construção social tão forte que se associa ao compromisso social que cada pessoa tem. Se cada um tiver a sua opinião e ficar com ela para si, não há mais debate público sobre nada. Porque o bar só tem 50 pessoas e, imagine só, minha opinião bate com a daquele cara que está sendo ouvido por 100 mil pessoas. E, por fim, porque há uma irresistível obsessão do ser humano pelas relações, uma necessidade, uma questão de sobrevivência.
O comentarista de futebol serve para isto. Para dizer o que eu penso. Para falar bem do meu time, para que eu possa considerá-lo bom. Para falar mal do meu time, para que eu possa considerá-lo ruim. Para que eu possa xingá-lo e elogiá-lo, porque não é só sobre uma análise a respeito da minha paixão. É uma análise sobre um aspecto fundamental da minha identidade. É uma análise sobre aquilo que eu sou, aquilo que me pertence. Porque futebol é tudo, menos só campo e bola. Porque a imprensa esportiva é tudo, menos só um cara falando sobre meu time. O comentarista exerce uma conexão de empatia ou rejeição tão forte porque ele justamente está se intrometendo naquilo que eu sou. Ou dizendo que parte do que eu sou é bom ou ruim. E quando o assunto sou eu, eu preciso saber sobre o que estão dizendo. Ninguém é uma ilha de autossuficiência emocional quando se trata de sua própria identidade. É quando o comentarista deixa de ser esse mediador para ser, nas entranhas da fragilidade de seu discurso racional ou de autoridade e passa a ser um de nós. Ou um deles. Todos querem saber de que lado da trincheira a gente está. Ou não está.
[1] Diálogo apresentado em cena do filme “O Segredo dos seus olhos”, de Juan José Campanella (2009). Sem spoilers, mas trata-se de uma relação com o futebol.