O jogo metafísico: a empiria, a ciência e o sobrenatural do futebol

Carlos Guimarães
8 min readSep 10, 2019

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Luxemburgo: uma cruzada contra o novo

Durante a Brasil Futebol Expo, um encontro em que personalidades do futebol brasileiro debatem sobre as questões do esporte, Vanderlei Luxemburgo atirou a primeira pedra:

O europeu não tem o empirismo [grifo nosso], tem aquela coisa de robô, de esquema tático. Quem tem o improviso é o brasileiro. […] O 4–1–4–1 não ganha nada. Quem ganha é o atleta.

Dunga também bateu forte:

A gente quer copiar tudo da Europa. Temos que buscar e incentivar mais o drible. A gente protege demais o jogador. Tem jogador que sente arrepio e para de jogar. Tem jogador que não para por nada. Isso daí não está em livro nenhum, em nenhuma tese.

As duas manifestações de personalidades indiscutíveis geraram reações que mais uma vez deram à luz ao grande debate que se estabelece no futebol brasileiro pós-7 a 1. De um lado, aqueles que acreditam que o futebol atual está robotizado, mecânico, pasteurizado. De outro, os que acreditam que Luemburgo e Dunga estão ultrapassados e não enxergam que o futebol contemporâneo se dá essencialmente através da ciência (termo que, do jeito que é utilizado pelos analistas, será contestado aqui). Afinal de contas, quem está certo? O futebol está realmente robotizado? O importância que se dá à parte tática supera ao que se dá à espontaneidade do atleta? O drible terminou? Futebol se analisa com ciência? O inesgotável duelo entre o antigo e o moderno, a conceito e a empiria, o novo e o velho, a arte e a ciência, proponho uma reflexão através de um percurso dialógico que busca entender (e não solucionar, acho que ninguém precisa ter esta pretensão) o debate.

Futebol, uma ciência do espírito

Em texto que escrevi em janeiro desse ano, argumento que a melhor maneira de analisar futebol é entendendo o mesmo como um fenômeno onde seu alcance transpõe o simples jogo das estratégias. O futebol se apresenta, sobretudo, como um jogo de intervenções, interferências e subversões que transformam o jogo em algo superior para qualquer pessoa que esteja inserida nessa cultura. Ou seja, para ninguém o futebol é só “campo e bola”, mesmo para quem trabalha nele e com ele. Ele produz uma série de fenômenos intrínsecos — não paralelos — que desafiam a racionalidade, a identidade pessoal, a relação entre os indivíduos, a compreensão do evento e a interação entre o objeto e os sentidos. Ele é, em suma, um fenômeno hermenêutico [1].

[1]Aqui, tem-se a hermenêutica como conceito filosófico, em que o homem não analisa objetivamente a realidade, mas a interpreta. O futebol é um esporte onde os eventos do espírito assumem grande proporção. As ciências de espírito têm a particularidade de poder ser interpretadas, pois como não possuem dados suficientes é necessário interpretar algo a mais.

É claro que o princípio básico do futebol é compreendê-lo como esporte, relacionando-o, à priori, com as ciências naturais, como a biologia. Mas na própria biologia há um grau de transcendência quando o organismo é sujeito às decisões humanas. A complexidade que habita no ser humano desencanta boa parte das explicações racionais que os cientistas mais ortodoxos insistem em fazer. O futebol não é algo que pode ser isolado num laboratório, submetido a experimentos rígidos e a resultados que vão explicá-lo por completo. Há dois motivos para que eu acredite nisto: 1) ele é operado por humanos, ou seja, submetido às imperfeições e às distinções de decisões que os humanos realizam sob diferentes condições; 2) aquele campo e aquela bola com aqueles humanos produzem um fenômeno que resulta em uma cadeia de outros fenômenos que, uma vez materializados, engendram uma série de impactos em quem não está no campo com aquela bola. Ele é um elemento catalisador que repercute em níveis que fogem do escopo meramente instrumental do esporte: ele é social, cultural, filosófico e até metafísico (ops, não é o Nelson Rodrigues e seu “Sobrenatural de Almeida” na área?).

Como o futebol é orientado por uma interação humana (o campo de jogo) que gera fenômenos de natureza humana (a paixão, o negócio, a estrutura), é possível se apropriar do conceito de Deleuze e Guattari, que propõem que o pensamento é um rizoma: não há uma estrutura que se impõe em relação a outra; o pensamento é múltiplo, plural, de diversos caminhos, abrindo diversas possibilidades, fora de hierarquias, de sobreposições, de níveis que organizam o entendimento. O futebol, uma ciência do espírito, é, portanto, rizomático. Ele é o drible e é a tática. Ele é o passado, mas é o presente e é o futuro. Ele é o saudosismo e é o cotidiano. Entre essas dicotomias que separam e aproximam o pensamento, entretanto, há uma regra: a de que o futebol é pura hermenêutica, sujeito a diversas interpretações, debates e pontos de vista que recortam uma imagem e eliminam qualquer pretensão de compreendê-lo por completo.

Desta forma, é possível afirmar que tanto Luxemburgo quanto os analistas estão certos? A rigor, sim, não fosse pela premissa equivocada de ambos, que começa a partir de uma origem que negligencia conceitos básicos que são utilizados de forma errada, como, por exemplo, o que é ciência e o que é empiria.

Entre a empiria e o ciência: o erro está na origem

Um dos principais conflitos neste debate é entre as pessoas que acreditam que o futebol deve ser analisado através da ciência e aqueles que acham que o empirismo se sobrepõe à ciência. O ponto de partida deste debate começa no erro que se tem ao tomar como base cada lado. Em suma, um erro ao definir o que é ciência e o que é empirismo.

Voltemos a um dos livros de cabeceira dos defensores ferrenhos da ciência no esporte. Trata-se do Moneyball, que virou febre depois que o Brad Pitt interpretou um manager de uma equipe de beisebol que contratou um consultor que contratava os atletas com base em especificidades e índices. É claro que a versão hollywoodiana pode romantizar alguns fatos e isto precisa ser relevado. O livro, entretanto, é mais fiel aos fatos. Neste artigo, produzido por Vitor Camargo, há uma resenha que aborda a questão da ciência do esporte. Há um trecho que desmonta a visão rígida de alguns defensores da ciência: “ Em outras palavras, ao invés de encarar o esporte com as certezas da visão tradicional, passar a olhar para o esporte como qualquer ciência: questionando as velhas certezas, testando empiricamente as hipóteses, e descobrindo novas verdades”. Ao invés de desprezar o que é a empiria, há uma atenção naquilo que de fato pode — ou não — ser comprovado pela ciência: toda análise precisa passar por uma prova empírica para que o resultado seja comprovado.

O uso da palavra empiria ou empírico ou empirismo vem sendo utilizado pelo senso comum dos analistas de forma errada. Tem-se que a empiria é a prática pela prática, o improviso, não obstante, uma espécie de achismo. Empiria é uma palavra grega que significa experiência. O futebol é um jogo de prática. Ou seja, todos são submetidos a um processo empírico. Quando Luxemburgo diz que o europeu não é empírico significa um desconhecimento brutal da palavra, da mesma forma que quando um analista brada que “chega de empirismo” ele está utilizando a terminologia da mesma forma, ou seja, sem saber o que significa.

Da mesma forma que, ao abordar números, índices e performances coletivas e individuais e tomar decisões baseadas nestes indicadores também não significa que ali há um método científico para que a análise esteja completa. Há, quando muito, um tipo de análise quantitativa, que pode passar por um recorte qualitativo, mas que só se dá por inteiro quando a prova empírica se manifesta contra ou a favor dessa hipótese. E mesmo que tudo isso hipoteticamente dê certo há outros aspectos que complementam este fazer científico.

O jogo do presente: a hipótese da metafísica do futebol

O futebol não é um jogo para ser analisado com rigor científico porque ele está submetido a grandes acontecimentos que são imponderáveis, imprevisíveis, casuais. Quando o acaso toma um grau de protagonismo, finda-se o rigor científico. Além do acaso, há questões que são pretensamente explicáveis sem uma nota convincente qualquer que prove A ou B. Um exemplo clássico é o tal do fator local. Por que em geral as equipes jogam melhor em casa? É a torcida? São as referências em campo? É a concentração que aumenta? Nas explicações, corriqueiramente se fala no aspecto mental. Em tese, num confronto de mata-mata, o adversário é o mesmo, a bola é a mesma e, se não houver desfalques, o time é o mesmo. Então por que se muda tanto o jeito de jogar? Por que existem fatores que condicionam o ser humano a agir diferente em circunstâncias diferentes, com cenários diferentes, com energias distintas. Qual ciência explica isso? A psicologia? Talvez. Mas também necessita aí uma certa análise metafísica, uma possível interferência de fatores que se afastam do que se prova, do que se materializa e do que é factível. Nelson Rodrigues chamou de Sobrenatural de Almeida. A nova análise chama de condição mental. Nem o cronista e nem o analista de fato sabem explicar. Não há ciência possível que comprove aquilo que não é material.

À sua maneira, Luxemburgo interpreta que o futebol é empírico. À sua maneira, os analistas interpretam que o futebol é científico. À minha maneira, entendo que esta oposição só se dá no campo de uma retórica mal construída por ambas as partes. O futebol não deve ser analisado de forma pragmática ou essencialmente teórica (supostamente científica). Ele também não deve ser analisado de forma a tê-lo como um improviso, que despreza determinadas organizações que o jogo possui. Este debate é inclusive um pouco esquizofrênico, visto que, de acordo com o pensamento de Luxemburgo, bastaria colocar em campo os melhores que as coisas estavam resolvidas; já pelo ponto de vista dos analistas qualquer movimento de campo é uma reprodução fiel do que é treinado.

O treino é importante. Mas cada jogo tem uma história, uma fala. Ele não obedece a nenhuma condição que possa ser previamente executada, simplesmente porque tudo que acontece na partida está acontecendo pela primeira vez. O treino é uma orientação baseado em previsões que são levantadas a partir de movimentos corriqueiros. Entretanto, o que é presente é sempre inédito, sempre algo que nunca foi visto. Tudo que é ordinário será subvertido em algum momento dos 100 minutos para algo extraordinário, isto é, diferente, inédito, imprevisível. A ciência não tem bola de cristal para estes casos. Nem o ser humano. Nem qualquer explicação que a gente busca encontrar.

O pensamento rizomático do futebol, portanto, permite que ele seja um esporte a ser explicado pelas ciências. Uma única ciência não dá conta de tudo que envolve o jogo. Ele envolve as ciências biológicas e as ciências do espírito. Ele é um esporte do espírito. Ou, se preferirem, um esporte da alma, onde pouco se comprova e muito ainda segue ao sabor do acaso, deliciosamente inexplicável e apaixonantemente sobrenatural (de Almeida ou não), onde todas as interpretações estão corretas. O mais puro, fascinante e lindo exercício de hermenêutica que a sociedade pós-moderna tem ao seu dispor, quarta e domingo, quarta e domingo…

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Carlos Guimarães
Carlos Guimarães

Written by Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.

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