O irreal e as redes sociais

O bug nas redes sociais e o cotidiano irreal: elas não são mais a extensão da vida humana; elas se tornaram a nova vida humana

Carlos Guimarães
14 min readOct 5, 2021
A nova vida pós-moderna: a irrealidade como cotidiano

Um dos maiores insultos que eu recebi nas redes sociais foi depois de ter publicado um texto aqui no Medium. Compartilhei a postagem no Twitter. Era um tema bem atraente, que eu sabia que poderia interessar a muita gente — se eu não me engano, era sobre futebol. Uma das respostas foi a seguinte:

“O tema é bom, mas é muito longo o texto. Por que não faz isso no formato de podcast ou num canal de YouTube?”

Embora não pareça, eu lido bem com as ofensas que recebo nas redes, historicamente relacionadas ao futebol. O ódio é algo que faz parte da arquitetura dessas plataformas, especialmente sobre questões políticas e ideológicas. Os que mais me xingam são os bolsominions. O modus operandi deles deixou de me causar revolta. Burrice me faz rir, a despeito de ser trágico. Eles não me incomodam mais. O Twitter passou a me incomodar e eu não sabia exatamente por qual motivo. Já havia citado como as redes sociais podem ser nocivas e gerar péssimos sentimentos. Dentro dessa autorreflexão, parei um pouco para entender onde estava o problema. Esse texto é sobre a descoberta da origem do meu incômodo e, ao mesmo tempo, um tributo aos profetas Umberto Eco, Marshall McLuhan e Jean Baudrillard, meus gurus de sempre: é sobre a nossa irrealidade cotidiana.

Ponto de partida

No BBB21, que acompanhei com um espírito de curiosidade e, não nego, empolgação com o entretenimento, João desabafava sobre seu salário com o Fiuk. A resposta do ator-cantor-filho-do-Fábio-Júnior foi a seguinte: “por que você não cria um canal no YouTube para ganhar dinheiro?”. João é um professor de ensino fundamental, um cara super inteligente, com bom vocabulário, visão de mundo e relativamente carismático. Seu salário era péssimo e a solução era criar um canal de YouTube, que se tornou a solução para todos os problemas no mundo da comunicação. O mercado de startups, que deslumbra millenials e nativos digitais, proliferou-se de tal maneira que qualquer um que esteja fora desse ambiente se torna, automaticamente, ultrapassado. É a defasagem programada de atividade laboral; apenas na Internet você pode ser alguma coisa relevante.

Tenho muitos amigos com canal de YouTube e fazendo podcasts. Eu não descarto um dia montar um canal ou participar de um. Entendo que o mundo da comunicação é dinâmico, obedece naturalmente e de forma orgânica às transformações políticas, econômicas, sociais e, especialmente, tecnológicas. Também não tenho o perfil de ser resistente às novas mídias, porque, mesmo que não queira, estou inserido nesse contexto. Não tenho força para dobrar o contexto, eu me dobro a eles, é darwinismo, é a lei das adaptações. No entanto, percebi que sou um péssimo consumidor dessas mídias.

Na minha última parcial anual que apontava meu perfil de consumo no Spotify, os índices mostravam um consumo de milhares de minutos de música ouvida. Também mostrou o quanto eu ouvi de podcast num ano inteiro: foram 241 minutos. Quatro horas de programação. Considerando que boa parte dos programas possuem, em média, uma hora de duração, eu acompanhei quatro horas de podcast num ano inteiro. Não sei quantos álbuns eu conseguiria ouvir com os meus 42 mil minutos ou 683 horas ou 28 dias de músicas ouvidas. Eu devo ter ouvido mais de 600 discos inteiros num ano inteiro, quase dois por dia. Eu ouço música sempre — neste momento, inclusive [¹]. Eu não ouço podcasts, o que é um erro grave para um sujeito que estuda, entre outras coisas, áudio.

Eu não assisto aos canais de YouTube dos meus amigos. Nem deveria escrever isso, mas é um formato que me interessa pouco. Gosto de ver shows e jogos antigos na plataforma. O YouTube, para mim, pode virar trabalho, mas ainda não é. Eu preciso me acostumar e ainda não consegui encontrar o mesmo encantamento que tenho com um texto bem trabalhado, por exemplo. Eu leio meus amigos, ouço meus amigos, mas não vejo meus amigos. Eles sabem disso. Também não me sinto um sujeito anacrônico, não entendo isso como algo avesso ao que é considerado novo. É apenas uma questão de gosto, hábito e costume.

Entendam, quando eu recebi, de uma pessoa que eu prezo bastante, aquela mensagem, soou como um tapa na cara: para ser relevante, é preciso se atualizar; para ser entendido, é preciso que seja visto ou ouvido, não mais lido. O conteúdo não importava mais, era sobre o meio. O meio era a mensagem. McLuhan vibra, onde quer que ele esteja.

Falecido em 1980, Marshall McLuhan foi o mais profético, midiático, narcisista e espetacularizado filósofo da comunicação de todos os tempos. Ensaístico, provocativo e criticado pela comunidade acadêmica mais conservadora (a academia é um dos meios mais conservadores, por sinal), McLuhan previu o futuro da comunicação e se tornou uma espécie de Nostradamus do mundo digital. Nessa entrevista, ele apresenta, para uma plateia disposta a devorá-lo, suas premissas sobre aldeia global, meios como extensões dos homens e, principalmente, sobre como o meio tem um efeito em nós, mais que o conteúdo da mensagem. É o meio que define como o receptor vai te entender, se ele está disposto ou não a te entender, dimensões no impacto da mensagem e a amplitude dessa recepção. McLuhan sacava sobre engajamento muito antes dessa palavra significar a fundamentação métrica que define nosso alcance.

Na segunda-feira, dia 4 de outubro de 2021, caíram, ao mesmo tempo, o WhatsApp, o Facebook e o Instagram. O Twitter, o Telegram, o Gmail e o LinkedIn ficaram instáveis. As pessoas, habituadas com essas ferramentas, ficaram desnorteadas. “Foi como se faltasse alguma coisa”, eu li. É claro que faltou. É quando McLuhan, mais uma vez, profetiza sobre o paradigma definitivo da comunicação: se os meios são as extensões do homem, faltou-lhes um pedaço. No caso das redes sociais, um pedaço da própria vida, uma vez que elas já deixaram de ser uma extensão: já são, efetivamente, a própria vida.

Mais do que nunca, o meio é a mensagem

Quando fui involuntariamente insultado sobre meu texto e com a bem intencionada sugestão de que aquele conteúdo deveria ser reproduzido numa mídia mais dinâmica (sic), percebi que não se tratava sobre o meu suposto anacronismo. Era, principalmente, sobre hábito e cotidiano. As pessoas deixaram de ler e, para piorar, deixaram de querer ler. Ler exige uma atenção concentrada e dispensa a réplica imediata. O texto mais profundo resiste como um dos poucos procedimentos comunicacionais em que não existe uma cultura da participação imediata. Você parece não existir quando lê, porque, na sociedade pós-moderna, espetacularizada e imagética, você só existe quando participa. Claro que ao acompanhar um podcast ou um canal de YouTube, sem ser em live, essa cultura da participação também é reduzida. Mas aí chega no segundo ponto que define o hábito e o cotidiano: você pode acompanhar um episódio de podcast ou um vídeo no YouTube com a sensação de que está consumindo um produto dinâmico. Torna-se quase uma distração, ao passo que, num texto, existe uma sensação de esforço sobre o conteúdo que é produzido. As pessoas não querem se esforçar, a vida está cara e todo mundo trabalha demais.

Eu me expresso muito melhor com as palavras que com a fala. Acredito que todas as coisas que eu posso dizer são melhor traduzidas num texto, onde consigo rever, reavaliar, corrigir e acrescentar. Eu me sinto muito mais acolhido lendo um texto, observando detalhes, caprichos e nuances que um autor só conseguiria oferecer através das palavras. Porém, ler requer um grau de aprisionamento sobre o objeto que nenhuma outra mídia tem. Não existe leitura relaxada. Pode haver um texto com um conteúdo relaxado, mas mesmo assim, quando ele desperta sua atenção, você não o faz com relaxamento, com desprendimento e com distração. Caso você faça isso, você não vai capturar a essência do texto e ele não servirá para nada. Toda leitura é um ato de esforço e concentração.

O TikTok é a mídia da pós-modernidade. Nada nele é profundo, longo ou exigente. São vídeos curtos, em que você gasta uma hora para editar um conteúdo de quinze segundos. São de fácil assimilação, geralmente memetizados, com um conteúdo que é compreendido até por uma criança de cinco anos. Se lançassem o TikTok nos anos 1980, por exemplo, teria uma advertência: “para crianças de 4 a 10 anos”. O que está em jogo aqui não é o conteúdo, mais uma vez. Sei que existe muito material +18 na rede. O que está em jogo, e mais uma vez chamo McLuhan para o papo, é o meio. O TikTok se apresenta como uma mídia rápida, fácil e divertida. O meio é a mensagem, mais que aquilo que você posta nela.

Se eu explicasse tudo isso numa sessão de trinta segundos no TikTok, eu alcançaria, com certeza, muito mais gente que aqui no Medium, onde tento fazer textos de profundidade com até vinte minutos de tempo de leitura, subtítulo, mini-nota de rodapé e uma infinidade de clichês de escrita que a vida acadêmica me presenteou e que influenciaram violentamente o meu jeito de escrever. Meus textos são, em termos de senso comum, enfadonhos. De certa forma, sei disso e, como aqui eu dispenso certas hipocrisias, soa como uma forma de orgulho pessoal. Acho que entendi os acadêmicos, finalmente. O grande problema é que eu gosto de escrever, hábito que, além de tudo, é terapêutico para mim.

A questão é que eu escrevo para os outros. Quero leitores, gosto deles. E é aí que a conta não fecha: eu gosto de escrever e cada vez menos tem gente que gosta de ler. É difícil escrever sem leitores. Ao mesmo tempo, é um desafio e uma defesa: eu quero que as pessoas leiam, quero que a escrita não seja um modo ultrapassado de comunicação e isso desafia todo um ecossistema que conta com a força do meme, da imagem, do superficial e do fugaz. Pretensiosamente, quero meus textos para a eternidade e não para os 15 segundos que me acompanham enquanto espero o elevador chegar. Desafia-se, pois, toda a lógica pós-moderna: tudo que é para ficar não fica mais; ao contrário, escoa-se como tédio ou, na melhor das hipóteses, como efeméride.

A exceção é o Twitter, onde a gente escreve para que os outros finjam que estão lendo. O Twitter não é uma rede social de leitura; é uma rede social de participação. De nada vale aquilo que eu li se eu não disser que eu li, se eu não respondi, se eu não interagi. Eu pensava, tempos atrás, que o Twitter era uma extensão (oi, McLuhan, não te deixo em paz) do papo de bar. Ele não é o papo de bar. Ele é uma expressão que, sobretudo, registra. Seja o ódio, o amor, o trivial ou a convivência, ele é uma rede social de registro de cotidiano, uma espécie de diário compartilhado, onde a nossa relevância é medida pelo número de pareceres que a gente dá sobre absolutamente tudo. E quem está interessado? Ninguém a não ser nós mesmos.

As redes sociais como registro de convivência

Como mencionei anteriormente, a estupidez diária de bolsominions e burros não me incomoda mais. Parte das pessoas que sigo e que julgo inteligentes me incomoda. Explico os motivos.

Certa segunda-feira, percebi que uma pessoa muito legal tinha feito 48 postagens no Twitter sobre nove assuntos diferentes: CPI da Covid, programa da Ana Maria Braga, Sílvio Santos, programação radiofônica matinal em Porto Alegre, futebol, imprensa gaúcha, Bolsonaro, sobre a roupa que saiu de casa e sobre o que iria jantar. Nove assuntos. Um dia. Ela não era a única pessoa. Curioso que sou, fiz aqui um levantamento bem rasteiro sobre as contas que mais escrevem no Twitter. Em média, elas fazem registros na rede social de quinze em quinze minutos, isto é, a cada quinze minutos, alguma coisa que elas estão fazendo ou pensando é registrada na rede. Penso que é extremamente difícil a pessoa fazer qualquer outra coisa se ela está a cada quinze minutos colocando um parecer na rede.

Num pensamento lógico, as pessoas vão imaginar que isso se dá por carência ou por solidão. Não precisamos nos aprofundar nos meandros psicológicos do tema, até porque não conseguiria me aprofundar nisso. Desprezei essas premissas e obtive como clara impressão a ideia de que elas fazem isso simplesmente por hábito. Logo, aprofundando-me nisto, entendo que o Twitter não opera mais como uma extensão do cotidiano; ele é o cotidiano. O Twitter passa a ser utilizado como as outras banalidades do dia a dia, como tomar água, almoçar, escovar os dentes ou falar com um amigo. O Twitter é a própria vida.

Um amigo meu, tuiteiro de carteirinha, provocou na rede: “Como que os não tuiteiros se informam?”. Lembrei da época que fui mais bem informado sobre as coisas, mais que agora. Ora, eu me informava pelo meio que era disponível para mim em cada época. Só que não era só informação, era aprendizado, pedagógico ou, em última instância, capturar a informação para mim. Isso acontecia porque havia o hábito: folhear os dois jornais de Porto Alegre, que meu avô assinava, sempre de trás para a frente. Esportes primeiro, outros assuntos depois. Finalizava com a parte de cultura e brincava com as palavras cruzadas. Logo, como o costume da leitura era incorporado ao cotidiano, o meio se fazia presente como, mesmo de forma inconsciente, a forma de se informar. A lógica com o tuiteiro é a mesma.

A diferença é que o meio possibilitou que esse hábito não fosse somente o da leitura e o da captura de informações. Como coloquei, ele funciona como um registro de convivência e de cotidiano. Você não está ali só para ler, você está para dizer, acreditando que as pessoas querem lhe ouvir. Mas também está para apresentar trivialidades, manifestar desejos e apresentar impressões, opiniões ou rejeições que tornam a rede um tipo de scrapbook das banalidades, com um plus de que você também pode se informar. É um natural exercício aplicado de tudologia pública.

Durante o bug de outubro, o Twitter foi uma das poucas redes sociais que permaneceram ativas. Ali, foi possível perceber o que chamo de angústia do apagão; foi como se todos deixassem de se comunicar. As redes passaram a servir como um mural de registro de sobrevivência: estou vivo, pois o Twitter está vivo e isso basta para que vocês não se preocupem comigo. Por ser a vida em si, o tuiteiro só se sente vivo quando tuíta, mesmo que esteja saudável e alimentado. É o momento em que troco Marshall McLuhan por Jean Baudrillard: não se acha mais realidade quando tudo é hiper-real.

O cotidiano irreal

O termo é de Umberto Eco, um dos meus autores preferidos, talvez meu autor preferido. Em Viagem na irrealidade cotidiana, Eco fala sobre sua viagem aos Estados Unidos e sobre uma espécie de culto à irrealidade, em que simulacros se apresentam como a verdade momentânea e como o consumo desta cultura é tão forte que passa a ser a realidade contada. É a lógica do museu de cera: você não pode ver Elvis, mas você tira foto ao lado do boneco do Elvis como se estivesse tirando uma foto com o próprio. Essa cultura, inicialmente apresentada como entretenimento (os filmes, os games, as ficções), materializa-se com as redes sociais. O Twitter é o boneco de cera da vida real.

As micro comunidades formadas na rede social, também conhecida como a sua timeline, encadeiam pessoas que nunca se viram, não se conhecem, mas que, por conta de afinidades específicas, interagem em pequenos registros de cotidiano. A pessoa que eu nunca vi antes queimou o pão, fez uma comida ruim ou saiu de casa com frio. Ela também torce para o meu time, vota no mesmo político que eu e tem opiniões bem fundamentadas — de acordo com o meu ponto de vista — sobre diversas questões da vida. Ela serve para ser minha amiga e eu supostamente a conheço. O que seria mais real que isso? Talvez o fato de que ela nunca foi tocada, abraçada, beijada, que você nunca entrou na casa dela, só a conheça por foto e olhe lá. Mas você [supostamente] sabe tudo sobre ela, mesmo que ela não esteja na sua frente.

Poderia apontar essas relações como frívolas, mas creio que, diante deste novo cenário, elas apresentam um grau de profundidade que não cabe a mim desprezar. São relações intensas, em que você sente pela pessoa, em que ela desperta sentimentos e sentidos que você possivelmente não tenha pela figura que você vê todo o dia no seu trabalho. Ela é mais importante que o teu vizinho de porta. Um pensamento pós-moderno indicaria que o fato de conhecer pessoalmente é uma mera formalidade e que a essência já é demonstrada nas redes sociais. Porém, é bem mais fácil construir uma persona nas redes. Você fabrica a sua essência nas redes sociais e reproduz aos seus seguidores a imagem que você quer colocar naquele momento.

Aparece, então, o principal sintoma da vida hiper-real, que é a dissimulação. Você dissimula as imperfeições, selecionando-as conforme sua conveniência e distribuindo-as para seu público para que, enfim, ele entenda que você é humano. É uma dissimulação de humanidade: desumaniza-se a essência para que ela seja reproduzida não em forma de essência, mas de simulacro. As redes sociais são os simulacros da nossa existência e, por consequência, da nossa realidade. No último ato, existe a tentativa de dissimular a própria irrealidade, na tentativa de realocá-la em sentido de realidade, que é a proposta de todas as redes sociais. Mas os filtros são tantos que existe uma vala comum para todas as nossas postagens, que é a vala da irrealidade.

Como isso é incorporado ao cotidiano, é possível dizer que não há mais realidade; há, apenas a hiper-realidade ou a irrealidade cotidiana. No bug de outubro, o sentimento de perda, de vazio ou de faltar algo não é um exagero ou, neste caso, uma dissimulação. É um puro sintoma de abstinência daquilo que não é mais daquilo que a gente precisa; é daquilo que a gente é. É quando as redes sociais deixam de ser parte da nossa vida para ser a nossa própria vida. Formatada como irrealidade e sentida como realidade, desfaz-se o sentido de necessidade e assume-se a ideia de puro e simples cotidiano.

Considerações finais

As profecias de Marshall McLuhan e Jean Baudrillard se confirmaram e existem vários estudos feitos por teóricos contemporâneos sobre isso. Esse texto não é acadêmico, é uma produção ensaística que visa relacionar estes temas de acordo com uma ótica bastante particular, como um registro de incômodos e de apreciações que tenho sobre esses assuntos. Sou somente um interessado aprendiz, sem pretensão de lançar qualquer paradigma mais definitivo sobre isso.

Todavia, pretendi, nestas linhas, dimensionar o quanto as redes sociais assumiram um papel que conseguiu escapar até das mais visionárias premonições de Marshall McLuhan. Se alguém disser que esse texto caberia mais num formato de podcast ou num canal de YouTube, ela não está apenas dizendo que está com preguiça de ler. Ela também está exigindo, ali, que tudo que eu penso seja levado para o seu cotidiano, para perto de seu hábito. Quando você identificar um tuiteiro escrevendo sobre tudo sem ganhar um tostão pra isso, você não está identificando um tudólogo em potencial: você está vendo, ali, a própria vida da pessoa, não em forma de realidade, mas como simulacro, como dissimulação de realidade, num movimento inconsciente, natural e espontâneo. É a era da dissimulação naturalizada: a gente não faz mais por querer parecer, a gente faz porque querer parecer é parte de nós na sociedade pós-moderna, mesmo sem sentir. É orgânico, passa a ser intrínseco. É a dissimulação não intencional: a gente faz porque é parte da nossa vida.

McLuhan diz que os meios de comunicação são incorporados ao indivíduo como extensões do próprio corpo. É possível afirmar que, embora sua capacidade de previsão fosse certeira, houve uma expansão de seu pensamento. O hábito de utilizar as redes sociais transbordou a lógica do filósofo. Tornou-se a própria vida, ainda que encenada, mas como uma encenação sentida, superando a ideia de representação da realidade. É um multiverso da própria vida, em que o irreal é mais vivido que o real. A irrealidade torna-se, portanto, cotidiana. O cotidiano torna-se, portanto, irreal. A vida vivida é a vida sentida e na ausência dessa vida irreal, vivida e sentida, falta-nos algo, não como extensão, mas como pedaço. A gente só sente que respira quando precisa de ar.

[1] Música que tocava no momento em que escrevia esse trecho: Kate Bush feat. David Gilmour — Running up that hill

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Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.