O fim das referências: quando o verniz se assume como invenção — parte 1

Carlos Guimarães
16 min readJul 17, 2019

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Existem muitos formatos que só têm verniz e não têm invenção (Renato Russo)

Pode ser cafona, mas eu não consigo fazer mais nada sem motivo. Citar Legião Urbana (Marcianos Invadem a Terra é a música) numa abertura de texto que tem como base aquilo que Jean-François Lyotard escreveu em A Condição Pós-Moderna (1979) soa quase como um alívio cômico diante daquilo que pretendo argumentar aqui — bem, há outras citações menos dignas no texto, procure as referências. Eu acho Legião Urbana chato e é justamente por essa contradição entre culpa e necessidade de postar esta frase de uma boa música da banda — a mesma que fez Eduardo e Mônica, Será e Pais e Filhos (blergh!, me sinto absolvido) — que abri meu texto desta forma. E também porque, afinal de contas, tem um motivo especial para a citação.

Pequeno prólogo: a pós-modernidade e os millenials

Lyotard (1924–1998) foi o filósofo da pós-modernidade. Escreveu A Condição Pós-Moderna mapeando a sociedade do final dos Século XX. Em sua principal hipótese, o francês apontava os caminhos da pós-modernidade para o fim das grandes narrativas que norteavam a humanidade. A questão pós-moderna requer um desafio muito maior e que, sobretudo, transcende qualquer análise que eu possa fazer. Em primeiro lugar, como em qualquer texto meu aqui no Medium, não há uma intenção pedagógica no que escrevo. Não cabe a mim explicar o que é a pós-modernidade, a não ser em reproduzir o que os grandes pensadores do assunto estabeleceram. Em segundo plano, sou um ávido aprendiz sobre o tema, longe de ser um especialista. Sou um interessado sobre o assunto, sobre o desenvolvimento da sociedade mundial, sobre aquilo que a gente pensa ou, resumidamente, sobre como o meu entorno pensa, age, calcula e se mostra. Sem pretensões acadêmicas aqui, diria que é apenas um chato falando sobre aquilo que me cerca, embora fosse mais lúdico e mentalmente saudável eu estar vendo um filme ou brincando com meus cachorros. Estudar sociologia e comunicação entorta a cabeça da gente. Especialmente a dos chatos. A minha.

Justamente por não me achar tão pós-moderno assim e por recorrer a algumas tradições que não foram superadas por mim — nem sei se precisam — ou por um lado niilista anti-Lei-de-Gérson que não vê vantagem em tudo é que aproximo o pensamento de Lyotard ede Renato Russo com aquilo que observo, na minha bolha, no meu entorno, no meu mundo, à minha distância, diante daquilo que consigo enxergar, de tudo que se vislumbra ou se eclipsa longe ou próximo ao horizonte, do que é subliminar, explícito, feio ou belo. O conjunto das minhas observações que, no final das contas, assumem esse niilismo programado — mas sincero, sem dúvidas — que incorporei ao personagem, mas também ao observador. Então, em tudo que acontece, seja no real ou no que se projeta, há uma grossa dose de pós-modernidade, pós-verdade e, entrando no que pretendo expor, do fim das grandes referências. A história começa com os millenials.

Os millenials entraram no mercado de trabalho de verdade. Em consequência, também assumiram uma parcela importante na sociedade de consumo. Numa relação meio o ovo e a galinha, não sei se as redes sociais transformaram os millenials nisso ou se foram os millenials que transformaram as redes sociais nisso. O nisso tem sentido pejorativo nos dois casos. Porque é um grande isso, uma coisa meio amórfica, meio sem propósito que é a arquitetura das redes sociais e a cabeça dos millenials. Creio que ovo e galinha tenham surgido juntos nesse cenário. As redes sociais têm, em sua arquitetura, um espaço de falso compartilhamento de ideias, conquistas e recompensas. É falso porque elas obstruem o sentido real do que significa compartilhar, que tem uma semântica bem mais nobre do que aquilo que a gente observa no Twitter ou no Instagram. O que se vê, de fato, é uma apresentação de uma hiper-realidade narcisística em troca de pessoas que vão validar essa hiper-realidade para que você se sinta menos pior do que aquilo que você é. É uma grande terapia informal. Ao postar uma ideia ou uma foto, você conta com um aval simbólico de gente que supostamente preza por você, mas que reage numa interação que igualmente serve como um golpe de altruísmo voluntário de quem curte. É bom para todo mundo. Quem posta, o faz para mostrar. Quem reage, o faz para agradecer. Uma troca de gentilezas pós-moderna.

Racionalmente ou pensando modernamente, é uma relação patética. A gente não quer socializar, a gente só quer, de forma cênica, mostrar ao mundo quem a gente é. Em troca de um aval esotérico, uma abstração profunda que se materializa em forma de likes. Se houvesse uma viagem no tempo e voltássemos aos anos 1970 ou 1980 para dizer que essa é a grande inovação nas relações sociais, tanto os hippies como os yuppies reagiriam com desdém a essa vocação contemporânea de dissolver as relações presenciais, manter a convivência no plano da indiferença, de desarticular o que é concreto, de superdimensionar a distância. Mas estamos numa era em que o domínio do tempo é millenial. E, embora a cabeça do millenial seja igual a uma cabeça de vento, com muito QI e um vazio no lado esquerdo, tem uma certa lógica esse comportamento virtual que baseia a falta de traquejo social nos jovens contemporâneos. Afinal de contas, entre razões e emoções a saída é fazer valer a pena: viver não é melhor que sonhar, mas sentir é melhor que pensar.

A sensação no lugar da razão

Evidentemente, o leitor é inteligente o suficiente para evitar que se faça uma ressalva maior no meu sentido de observação. Mesmo assim, caso seja preciso: meu objeto de análise exclui jovens da mesma faixa etária de classes menos privilegiadas. Meu recorte é o millenial rico/classe média mesmo.

Um evento que define as gerações atuais é o mochilão. Ou o intercâmbio programado. Em gerações antigas, havia um motivo concreto em quem decidia morar no exterior. Seja por não aguentar mais o país ou por tentar a sorte num lugar distante, existia uma certa lógica que motivava uma decisão difícil, que impacta em afastamento da família, das raízes, da geografia conhecida, dos amigos. Entretanto, quem disse que precisa ter motivo para fazer as coisas? É pós-modernidade e a gente faz as coisas porque a gente quer!

Neste sentido, é possível conhecer, entre os jovens de bom poder aquisitivo, diversos casos de pessoas que optaram por um período sabático (sic) na Europa ou nos Estados Unidos, por exemplo. Como nem tudo são flores no jardim de nossa casa, um intercâmbio ou um estágio servem como pano de fundo para a realização do sonho pequeno burguês subdesenvolvido terceiro mundista. A razão — ou falta de — na verdade é outra: o desejo de liberdade, de voar com o vento, de sentir os prazeres que as amarras, traumas e angústias associadas às nossas raízes não permitem. É um green card para a abstração de se sentir livre. É um passaporte para as sensações.

Com as pressões que o local impõe, viver na Europa se torna a maior encrenca com uma turminha do barulho. Surge o deslumbramento do falso anonimato. Estar fora do país estimula uma espécie de livre arbítrio espiritual do indivíduo, onde tudo é possível, lindo, pleno e, especialmente, livre. Como estamos falando de millenials, há ainda aquela impressão de eternidade que vai escasseando com o passar dos anos e com as cicatrizes da vida. “O meu tempo é o agora” e o aquilo que era um plano, que pressiona e oprime, vira imediato — que se descarta e redime. A sensação assume o lugar do pensar. O sentimento de experimentar coisas novas ocupa o sentido de responsabilidade, de planejamento, de longo prazo. Aí se tem a impressão de que viver é melhor que sonhar, mas que tal viver sonhando ao invés de viver para pensar. Pensar é, em estágios mais avançados, um exercício doloroso. Sentir-se alheio ou falsamente livre é a dosagem perfeita de torpor para uma vida que tem mais perguntas que respostas. Voa, vai ser gauche na vida.

A perda da referência geográfica é também um indicativo de que a narrativa da construção familiar, da perpetuação do sobrenome e do prolongamento do ser são entidades desconstruídas pelos millenials. A ideia de que está “voando” também é uma licença poética na narrativa da própria vida para explorar aquilo que supostamente não seria possível estando em casa. Essa impressão relativiza até os conceitos de sucesso e fracasso. Brasileiros e brasileiras que passaram um tempo no exterior precisavam pagar a conta do hostel de quinta categoria ou da casa de estudante ou da pensão num subúrbio de Paris. Já começa aí essa distorção: no Brasil, não aceitariam morar num quitinete, mas na Irlanda ou na Espanha aceitaram numa boa dividir aquele cubículo com mais quatro. No Brasil, quem não tem emprego em sua área e precisa exercer uma outra atividade para pagar os boletos sente o fracasso em seu íntimo. É que bebê francês tem o cocô mais perfumado que o do brasileiro, aí a gente limpa sorrindo.

A geração do biscoito

Volta e meia, eu me deparo com algumas fotos de meninos e meninas bem arrumados, semi desnudados, pronto para a guerra da carne, acompanhadas de uma legenda sugestiva que remete a alguma necessidade de atenção momentânea ou para suprir alguma carência existencial. A gíria indica que a pessoa “quer biscoito”, isto é, quer ser elogiada, paparicada, quer ser a atenção dos outros.

Embora todas as redes sociais sejam um Tinder involuntário por algum momento, também existe aqui uma manifestação clara da perda de referências, da ausência de objetivos e da geração do verniz. O tempo pós-moderno regenera a importância da imagem e relativiza o conceito de meta ou plano. Há uma inversão hierárquica da tradição: num primeiro plano, está o indivíduo enquanto imagem. É natural que isso aconteça. A primeira impressão é a que fica e é bom que ela pare aí.

Entretanto, há uma contradição nisto. Pedir um biscoito é implorar por alguma aceitação em que há intrínseco o socializar. Ninguém é uma ilha e a necessidade de interagir não é uma construção social, é uma condição vital para a sobrevivência da espécie, uma questão darwinista, biológica e animal. Em geral, as espécies procuram semelhantes como forma de afirmar a própria existência. No ser humano delineado pela ideia do humanismo, das luzes e da razão, esta necessidade biológica se transforma numa obrigação sine qua non para que, por si só, o homem tenha uma razão existencial. Quando alguém pede biscoito, na verdade está dizendo que ela precisa lembrar que ela existe. A existência se dá pela socialização. A contradição que mencionei na abertura do parágrafo se manifesta como uma comissão de frente do millenial pós-moderno: você implora por atenção, mas só pensa em você mesmo.

Ora, o comportamento individualista também é parte do ser humano. A diferença é que nas gerações atuais esse comportamento é levantado como uma bandeira, um orgulho, uma razão de ser: “eu me basto”, “apaixonado por mim”, “amor próprio”, “eu posso ser o que eu quero”. Independente da festa que os coachings fazem com tudo isso, é possível dizer que o amor próprio só se valida se houver uma real condição de convivência com os outros para validá-lo. A resistência ao matrimônio, à maternidade, aos pais e, na instância colocada no subcapítulo anterior, às raízes geográficas, são produções de um imaginário onde, neste cenário, aplaca-se a culpa, o tédio e a irrelevância. A culpa por não ter sido ou conquistado aquilo que você imaginou na juventude; o tédio por ver que a vida não é uma rede social lotada de “recompensas da novidade”; e a irrelevância porque o caminho para a importância é pavimentado por percalços, deslizes, obstáculos e fracassos.

O “amor próprio” é uma grande falácia estimulada por uma era em que a imagem parece significar mais que o ser em si. Mas também é um grande sintoma da perda de referências e do básico, que é enxergar da vida uma extensão dos seus desejos, que, definitivamente, passam longe de limpar cocô de filho de madame.

O ateu de Facebook

Os estudiosos da pós-modernidade abordam a questão religiosa como um elemento importante para a constituição do período. Jean Baudrillard, que no brilhante Simulacros e Simulação (1981) trata sobre o que é hiper-realidade — um tema fascinante -, conduz a narrativa para dizer que Deus é uma construção humana hiper-real. Independente da polêmica do tema e, embora sem relação com o sentido construtivo do texto, mas para deixar claro que não me considero ateu, a relativização em torno do ente mais importante da história da humanidade ganhou contornos bem interessantes para os millenials.

Dentro das verdades absolutas que os millenials construíram como forma de proteger seu próprio ethos, observo, na minha bolha, um crescimento de pessoas que assumem seu descrédito a respeito de Deus. As feministas, por exemplo, escrevem Deusa. Os que desdenham escrevem Deus em letra minúscula, algo que considero uma intensa falta de respeito a, gramaticamente falando, um nome próprio. Eu não gosto do Bolsonaro, mas nem por isso deixarei de respeitar a gramática e quem me ensinou Língua Portuguesa para escrevê-lo com as iniciais em letras minúsculas. Mas o Enzo, 21, estudante de publicidade, decide escrever Deus de forma errada e aqui estamos diante de um exemplo que é a mais clara expressão da falta de conhecimento e de real compreensão do que é, digamos, o maior fenômeno da história da humanidade. Surge o ateu de Facebook.

Não acreditar em Deus é um ato de rebeldia, num primeiro momento. Em geral, a relação que se faz com a divindade é demasiado ingênua. A correlação de Deus — o ente — com quem se diz seguidor de Deus — o homem — distorceu o pensamento dos opositores aos religiosos de uma maneira que parece uma atitude anacrônica acreditar em Deus. É um erro tão grande que só se justifica pela falta de conhecimento. A práxis religiosa é atribuída ao homem. As diversas alterações no sentido de pensar a existência de um ser transcendental foram necessidades humanas conduzidas por diversas intenções, da crença em si a relações de poder. Como Deus não está aí para se manifestar, o sentido espiritual se deforma em sentido ideológico, que refaz todo pensamento millenial, especialmente o de esquerda.

Embora o senso comum atribua a vitória de Jair Bolsonaro a uma horda de fascistas violentos enlouquecidos — que existem, obviamente -, no meu ponto de vista o que impulsionou sua candidatura rumo à presidência foi o uso da palavra Deus em sua campanha. Deus é a salvaguarda humana que serve como aquele objetivo, aquela referência máxima de que existe alguém nos vigiando, nos protegendo e fazendo valer toda a peregrinação terrena. Num sentido mais estrito, Deus é o refúgio da boa alma e quem crê em Deus é, por si só, uma boa pessoa. Claro que é um pensamento superficial, mas o discurso populista precisa ser superficial. Deus acima de todos e temos um bom homem. Marx não acreditava em Deus, a esquerda acredita em Marx, a esquerda não é feita por bons homens. A narrativa, quanto mais simples e mítica, é melhor. As pessoas acreditam em Deus da mesma forma que não acreditam: porque assim disseram ou porque assim me disseram para não acreditar.

Para os millenials, é um prato cheio. Da mesma forma que a cultura do zap invadiu a cabeça dos bolsominions, os millenials de esquerda associaram a existência de Deus ao que eles pensam. Só que pensar por si dá trabalho. E, claro, estamos falando de imagem. Passar a imagem de ateu tem um simbolismo enorme em tudo isso. Significa apresentar ao respeitável público uma ideia de subversão, de afronta ao sistema e, em último e mais importante ponto, de independência do pensamento. Voltemos ao amor próprio: nada mais revigorante que fazer os outros pensarem que você se basta por si, que você não se prende às amarras que culturalmente a sociedade nos empurrou, sejam elas familiares, matrimoniais, laborais ou religiosas. Eis que temos o ponto máximo da última referência que se vai. Se nem a principal delas — Deus — serve como referência, você está livre para voar, voar, subir, subir…

A era do auto-coaching

A modernidade foi moldada pelo cartesianismo do “Penso, logo existo”. É possível entender que a pós-modernidade é moldada pelos sentidos: “Sinto, logo existo”. A implacável busca pela resolução do “eu” ganha protagonismo e se sobrepõe ao senso coletivo. Não à toa, como já colocamos, há uma negação ao divino que olha por todos, à entidade que vigia, que explica a coletividade. O colapso da crença tradicional, que é um sintoma pós-moderno clássico, vem produzindo uma nova mitologia que substitui a própria crença em Deus: a autoajuda esotérica. Ou, sinteticamente, um processo de auto-coaching que se forma a partir da falência da crença maior e se explica por aquilo que é carro-chefe nos tempos atuais: o único sentido a se descobrir é o sentido da nossa própria existência.

É possível identificar cada vez mais pessoas inteligentes buscando explicações para o mundo através de explicações para si. As pílulas de felicidade cotidiana se referem, atualmente, ao “eu” sobre o “nós”. Um perfil no Twitter chamado “Foco de Luz” (@umbanda_luz) tem quase 700 mil seguidores. As postagens seguem este modelo:

Renuncie à necessidade de ser modelo de algo para alguém ou de querer copiar o modelo de vida de outra pessoa. Seu caminho é único, o que você necessita para evoluir já está no seu caminho, não há porque (sic) desejar o que pertence aos outros. Seja simplesmente você!

Com recomendações diárias sobre como as pessoas podem viver uma vida melhor, a conta é um sucesso. Mas é, também, uma pequena amostra de um novo modelo de referência: você mesmo. Quando o punk surgiu com o do-it-yourself, talvez eles não imaginassem que esse yourself fosse gerar uma onda de individualismo ferrenho, de narcisismo bruto e de egocentrismo patológico que conformam a sociedade atual. Evidentemente, isso tudo também é uma resposta ao que se tornou a prática religiosa contemporânea, um misto de projeto de poder com cegueira incondicional. Mas se tem gado do lado de lá, tem autocomiseração do lado de cá. É uma terapia motivacional do yourself. Você nem precisa entender que o mundo se dá do todo para o único, mas lá está você, tentando seguir os passos para a salvação através de uma arroba de Twitter sem assinatura. Essa negação a Deus gerou o pior dos males: não há um ateísmo convicto, uma negação mitológica em troca de uma ciência ou de um concretismo ou de um apego pelo cotidiano. Troca-se a adoração espiritual (à divindade) pela adoração própria (à persona). Meu Deus sou eu.

O egoísmo não surgiu no Século XXI. Mas ele se tornou um grande negócio no Século XXI. A questão do coaching, que é bem mais ampla e complexa do que podemos abordar aqui, é um indício de que as pessoas entendem como um bem comum, antes de tudo, o próprio bem. Elas realmente entenderam que para existir um mundo melhor é preciso se tornar um ser melhor. Ora, é uma ingenuidade acreditar que alguma pessoa vai ter tal salvação individual num contexto que é coletivo. Não se trata de fazer o bem aos outros. O nome disso é caridade. Trata-se de entender o seu papel no ecossistema, na sociedade, de como o mundo se comporta em situações que, independente do seu “caminho que é único”, vão afetar a sua vida. Não existe espiritualidade quando não existe pensamento coletivo. É só um caminho muquirana pra evitar o terapeuta.

É interessante que a referência de espiritualidade convencional (Deus) assuma uma rejeição tão grande ao ponto de recorrer a uma espiritualidade “alternativa”. Seja no coaching ou na autoajuda ou nas pílulas de sabedoria, o ser humano, mesmo negando, tem buscado para si aquilo que a pós-modernidade pulverizou de forma brutal. Talvez não seja o fim das referências em geral, mas somente um período — que acredito ser de transição — em que há uma sutil troca daquilo que se tenta buscar como, afinal de contas, o sentido para a vida.

Considerações parciais: qual o sentido da vida?

Na pós-modernidade, tudo pode ser refutado. Não há mais referência. Todas as narrativas foram superadas. Há novas narrativas. Não há mais o sábio. Tudo o que ele ensinar será repudiado, refutado e contrariado por quem não se vê mais como aprendiz. Todos são iguais, debatem da mesma forma. Todo conhecimento é válido, mesmo que seja um não-conhecimento. Na pós-modernidade, as clássicas narrativas de referência não têm mais valor. Elas serão contraditas pela pureza da resposta dos mais jovens: não têm valor porque existem novos valores. Na pós-modernidade, Deus é contestado; a ciência também. A oposição clássica vigente na modernidade dá lugar à pluriverdade. Se a ciência não responde às questões do mundo, se Deus não responde às questões do mundo, o que responde então?

É claro que, como reação, há os fervorosos defensores da ciência (“se tem artigo científico publicado, é porque é verdade”) e os ferrenhos devotos da divindade (“é assim porque Deus quis”). Há, nisto, um outro fenômeno: um aumento da defesa da própria crença. A explosão dos devotos na fé e na irrefutável crença na ciência operam como manifestações que se contradizem à pós-verdade. Com isso, de certa forma é ela que vem baseando as discussões sobre sociedade e comportamento nos tempos atuais. Sem ciência e sem religião, o que sobra? A crença no “eu”, no esoterismo pessoal, no narcisismo sem caminho de volta, em pavimentar uma trajetória que aparentemente independe de narrativas que soam paralelas, em executar o plano que soa infalível. Como a realidade é brutal, projeta-se a realidade. Constrói-se uma imagem, o advento operacional mais utilizado no Século XXI. Não se trata mais de pensar. Talvez não seja sobre sentir. Mas sobre parecer e aparecer.

A sociedade pós-moderna ostenta e busca para si a narrativa do ser ideal. Os coachings fazem sucesso e os perfis de autocomiseração também. Furta-se pensar no coletivo e se busca o aporte naquilo que soa menos engessado que a ciência e menos mitológico que a religião. Aquilo que a gente pode bancar, porque afinal de contas, nosso “eu” será sempre prioridade. Cria-se, portanto, a figura do herói pós-moderno. Ele não é mais Deus e não é mais Freud e não é mais o artista de cinema e não é mais o Batman. O herói pós-moderno sou eu. Eu escrevo minha própria narrativa e, mesmo que não exista num sentido real, será repassada aos outros, via de regra por redes sociais, num enredo que faz parecer que eu sou mais interessante que as referências que um dia você possa ter.

Fim das referências. Se eu tenho “eu”, eu não preciso mais de mágica, de I-Ching, da Bíblia, do tarô, de Hitler, de Jesus, de Kennedy, de Buda, do mantra, de ioga, de reis, de Elvis, de Gita, de Dylan, dos Beatles. Eu só acredito em mim. Em mim e em Yoko, ops, em quem quiser embarcar nessa história pitoresca em que o meu eu é a única referência necessária, turbinada por pílulas do bom amanhecer no Twitter, escoltada por outros “eus” que estão validando minha narrativa, impulsionada pela sensação sobrepondo ao pensar, jurando que estou fazendo a diferença quando na verdade, se Deus é um conceito, perante o todo, a gente também é.

Mas, se Lennon era megalomaníaco ou só queria introduzir uma pós-verdade individualista para chocar religiosos, você é só mais uma vítima dos tempos atuais. As referências seguem vivas e negá-las só atesta a sua importância. Se Deus não existe, o que existe? As redes sociais? A vida maravilhosa em Londres? A sua foto no Instagram? Os tempos atuais produzem tanta mitologia quanto aquilo que eles rejeitam. Não há diferença nenhuma entre os deuses gregos e a dica do coaching. É tudo subjetivo, irreal, projeção, abstração. Não há egoísmo que resista à verdadeira angústia que se tem e à incógnita de se procurar pelo sentido da vida. Eu não sei a resposta. Mas, veja só, os coachings também não sabem. E nem a Igreja. E nem a ciência. E nem o líder que vocês seguem como gado. E nem você mesmo. Você não acredita em Deus. Mas você também não acredita em si mesmo. É só imagem, não é verdade. No fundo, você é só verniz porque não tem nenhuma invenção. Mas alguém tem?

** O texto continua e será publicado em algum momento.

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Carlos Guimarães
Carlos Guimarães

Written by Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.

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