O exemplo de Boechat: porque ele é tão admirado e tão pouco seguido pelos jornalistas
Jornalista não é notícia, mas adora ser pauta. Jornalista não é celebridade, mas adora aparecer. Jornalista persegue liberdade de atuação, mas gosta de ser elogiado pelo chefe quando faz aquilo que ele manda. Jornalista diz que não se vende, mas não se furta em “recomendar” aquela cerveja que ganhou de presente para divulgá-la. Jornalista quer ser sério, mas adora uma gracinha na rede social. Jornalista quer ser fiscalizador do poder, mas adora quando um poderoso o reconhece. Jornalista quer preservação da fonte, mas adora quando a fonte passa a considerá-lo amigo. Jornalista busca independência, mas não gosta muito de se comprometer.
A profissão de jornalista é uma das que mais possui armadilhas em suas práticas cotidianas. A tensão entre aquilo que a gente persegue e aquilo que a gente faz é constante. É compreensível. Antes de ser um agente de fiscalização do poder, um elemento com função social ou um mediador entre o fato e o público, o jornalista é um ser humano com contas a pagar. A relação existente entre o dono e o profissional é igual em qualquer atividade. No jornalismo, existem os interesses que cercam o seu ofício. Nem que sejam os seus interesses. Sobretudo, esse dilema entre aquilo que a gente busca e aquilo que a gente faz é fruto, além da obrigação de pagar os boletos, de uma espécie de sedução que flexiona o jornalista a se desviar da sua essência. Há diversas sensações que cercam a gente: uma falsa sensação de relevância maior do que realmente é, uma falsa sensação de fama, uma falsa sensação de importância social.
Quando o New Journalism surgiu lá nos anos 1960, não se fez uma previsão do que seriam as redes sociais. A possibilidade da onipresença no ambiente das redes redirecionou a acepção deste conceito — um novo jornalismo, pegando o termo puro. O novo jornalismo, esse jornalismo pós-moderno, é muito mais Debord que Tom Wolfe. É um jornalismo espetacularizado, em que o jornalista se vê, também, como um protagonista da ação. Há diversos casos em que o jornalista é pauta de programa. Outros, em que sua vida pessoal é estampada no jornal da firma. É o que eu chamo de formação de um star system jornalístico. As empresas expõem seus ativos e reconceituam o próprio produto. Ou seja, o produto, que deveria ser a reportagem, a informação, o colunismo ou a opinião, passa a ser o próprio jornalista. É como se você comprasse o Steve Jobs e não o Iphone. Ou, sendo menos irônico, é conceber ao fazer jornalístico uma arte celebrizada: nossos jornalistas são nossas estrelas, mais do que aquilo que eles fazem.
Recentemente, num grupo de WhatsApp, coloquei um pouco do meu receio a este modelo. Julgo incompatível, por exemplo, um jornalista ser ao mesmo tempo um influenciador digital. Jornalista não é garoto propaganda. Como acreditar que o jornalista gastronômico realmente achou bom aquele lugar, já que sabemos que ele comeu às custas dele? Como acreditar que o serviço de aplicativo é realmente bom se sabemos que o jornalista ganhou para falar bem deste serviço? Não tenho nada contra ganhar dinheiro, mas a nossa função não é esta. Só que no novo mundo das redes sociais, likes são a melhor saída para ganhar dinheiro. Ou ao menos começar um novo negócio. Muitos acreditam que o jornalismo tradicional morreu, que há uma urgente necessidade de se reinventar. Que esta arquitetura atual das redes transforma nossa atividade. Antes, o ápice era conseguir um furo ou uma matéria exclusiva. Agora, é se valer desse sistema como um escape mais fácil para o sucesso.
Mesmo assim, ainda há um resquício de filosofia moral nisso tudo. Alguma coisa próxima de uma ética a respeito dessas práticas políticas e econômicas, que gera uma espécie de consciência sobre nossa função. Os mesmos jornalistas que foram pauta, aparecem em redes sociais fazendo propaganda de comida, bebida ou de si mesmos e que multiplicam suas atividades entre a redação e o picadeiro, choraram com a morte de Ricardo Boechat. Chegamos à tensão mencionada antes: por que se admira Boechat no discurso e se opõe a Boechat na prática?
Antes de mais nada, é preciso descrever o que Boechat significa para o jornalismo brasileiro. Ele foi (notem que o “significa” está no presente e o “foi” está no passado, um deslize proposital) um dos poucos âncoras a significar esta função em sua gênese. Boechat teve uma carreira tradicional: Globo, Jornal do Brasil, Bandeirantes, repórter, comentarista, apresentador, impresso, Internet, rádio e TV. Era um personagem sério, contundente e combativo. Mas era, sobretudo, independente. Comprou algumas brigas com patrões, com setores mais poderosos da sociedade, não se curvou para dar suas opiniões e era respeitado pela credibilidade adquirida ao longo de quase 50 anos de jornalismo. Jornalista com jota maiúsculo. Daqueles que a gente leva para a vida como um modelo profissional. Boechat era avesso às espetacularizações que cercam o novo-novo jornalismo. Se era engraçado, não era forçado. Se era carismático, era natural. Se comentava sobre política, não ficava no muro. Se tinha que atingir alguém, não se comprometia. Era autoral. Sem concessões a nada que não fosse estritamente o jornalismo, puro, simples, intocável.
Quando um jornalista influenciador digital se sensibiliza com a morte de Boechat, ele está puxando a sua própria essência de volta. O assunto do influenciador digital é bem mais amplo do que eu quero abordar aqui e, com sinceridade, entendo sua função no meio dessas teias emaranhadas que se amarram na Internet. É ultrapassado dizer que a Internet é a rede mundial de computadores em que todos estão conectados. Ela é um meio — multisensorial — que produz bilhões de pequenas redes, mais ou menos indo ao encontro daquilo que Castells pensa como o local se sobrepondo ao global. Com tantas possibilidades, a busca na Internet é cada vez maior por conteúdos personalizados. Você usa a rede para você mesmo, seus interesses, seus gostos, seus amigos, seu ego. Por isso, entendo o influenciador digital. Só não posso aceitar que, diante do que é de fato a essência do jornalismo, ele diga que você deve comprar um celular porque ele não serve para isto. Não queiram desempregar o Ciro Bottini. Ou que um profissional que trabalha com política não emita uma só opinião sobre o assunto. É muito cedo pra assumir o papel daquele garoto que queria mudar o mundo e agora assiste a tudo em cima do muro.
Boechat se foi e com ele uma raça em extinção: a do jornalista independente que, acima de tudo, se abastece desta independência — uma premissa inabalável do jornalismo. Talvez ele fosse mesmo acima da média do que é a profissão atualmente. Ou talvez fosse apenas um cara que respeita mais a profissão que os outros. Era um dos poucos que também conseguiam fazer o público confiar. Essa é a relação vital entre jornalista e audiência: as pessoas precisam acreditar no que a gente fala. E, por fim, levava tão a sério o jornalismo que não se permitia fazer outra coisa que não fosse jornalismo. Os tempos são outros, mas ele sempre conseguiu manter a dignidade da profissão em sua essência, adaptando-se ao meio, às novas tecnologias e as novas diretrizes produtivas, mas nunca deixando-se seduzir às tentadoras armadilhas da espetacularização da profissão, em que, mesmo sendo uma celebridade, era, antes disso, um grande jornalista.
Boechat deixa um legado e uma inusitada contradição. Era preferível admirá-lo que seguí-lo. Era uma inspiração mais moral e ética que de fato praticável. Nos tempos atuais, poucos queriam ser o Boechat. Mas, no fundo, muitos queriam ter a coragem que ele tinha, de estabelecer a plenitude de uma independência que cada vez mais morre nesse novo jornalismo. No final das contas, fica como teoria para apresentar aos jovens o que um dia foi o jornalismo verdadeiro e não esse arremedo egocêntrico, bobo, inofensivo, murista, cumpridor de obrigações, desértico e, em instâncias graves, mas não raras, mentiroso. Sua prática será admirada por aqueles que não têm sua coragem, que não têm sua contundência, seu espírito combativo e seu apreço pelo ofício. Mas só admirada. No próximo story, conheça o aplicativo para cuidar melhor da sua casa. Semana que vem, tem receita de bolo.