O dogma insofismável: por que Pelé (ainda) é incomparável

Carlos Guimarães
12 min readMar 20, 2019

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É parte do universo humano fazer comparações, listas e relações. Existe uma espécie de natureza da hierarquização. A gente faz as coisas por ordenamentos, listagens e preferências. Precisamos categorizar as coisas, não só pela polêmica, mas pela necessidade de organizar o pensamento. O ser humano é conduzido por hierarquia e organizações. Nessa grande biblioteca mental que separa as coisas por ordens, é inevitável que façamos as nossas próprias comparações, a fim de programar nossos juízos de valor para apresentá-los ao mundo de uma forma mais bem arranjada.

Nesta semana, depois de grandes atuações de Messi e Cristiano Ronaldo, os dois maiores jogadores do Século XXI, ganhou força, talvez como nunca antes neste país, o debate sobre quem é o maior jogador de futebol da história. Numa avalanche de textos, infográficos, vídeos e dados, uma série de programas esportivos debateu o assunto. Comparar sempre traz consigo algum tipo de polêmica. Polêmica dá audiência. O assunto, inegavelmente, tem um grande apelo. Reforça, por exemplo, o que a Placar fez no início do ano, quando, na capa, colocou Neymar como o maior jogador brasileiro pós-Pelé:

PLACAR jan.2019

O arroubo polêmico de PLACAR gerou manifestações bem mais contundentes a respeito de uma sucessão natural do Rei do Futebol. Da mesma forma, motivou uma série de textos de jovens analistas que, pela primeira vez, movimentaram uma espécie de onda que pela primeira vez na história relativiza o que foi Pelé. Ou, ao menos, esse dogma insofismável que o senso comum apreendeu ao longo de seu conhecimento de futebol, de que Pelé é o maior de todos os tempos e papo encerrado. Entendo que o futebol é dinâmico e que não existe absolutamente nada que não possa se desfazer. Entretanto, é preciso atender aos argumentos utilizados e colocar algumas coisas em seus devidos lugares. Por que Pelé é ainda o maior jogador de todos os tempos? E por que, sublinhando, pela primeira vez na história, sua coroa vem sendo questionada?

O passado é mesmo uma roupa velha que não nos serve mais?

Pelé no Santos e Rivellino no Corinthians: um futebol cheio de craques

Independente de metodologia para fazer a comparação, algo que veremos na sequência, existe aqui um duelo de gerações. Em alguns textos e threads de Twitter, uma palavrinha me incomodou bastante quando se faz essa comparação entre Pelé, Messi e Cristiano Ronaldo: saudosismo. Embora contextualizado em bons textos como este do Leonardo Miranda, existe um equívoco quando se atribui ao saudosismo uma lente velhusca chamuscada pela nostalgia e por lembranças de um passado que se foi. Em primeiro lugar, considero a memória afetiva no futebol um dos elementos mais sinceros para a própria sobrevivência do esporte. Ela serve para buscar a essência do que é o esporte em si para cada um. Veja bem, o esporte não é somente aquilo que é traduzido pelo campo de jogo. Reduzir o futebol a um duelo de estratégias é cartesiano demais, frio demais, objetivo demais, tecnocrata demais, cruel demais. O futebol é um evento da sociedade, com a sociedade e para a sociedade. Transcende organizações e racionalidades que uma nova análise tende a obsessivamente construir.

Recentemente, escrevi um texto sobre o caráter identitário do esporte. Ele supera as questões de campo para definir parte de nós mesmos. A saudade, a nostalgia e as memórias afetivas são um campo de conforto para o ser humano. Nada é mais bonito do que saber aquela escalação do seu time do coração de trinta anos atrás. Poucas coisas emocionam mais do que rever no Youtube a campanha do título de mil novecentos e lá vai pedrada. É emocionante sentir uma lágrima escorrer do olho esquerdo depois que você lembra daquela vez em que conseguiu uma foto com seu ídolo. As memórias são a tradução daquilo que fez você ser um fã de futebol.

É claro que, no plano da análise, o saudosismo contamina alguma fagulha de racionalidade que o espírito assume ter na hora de traduzir o acontecimento de um jogo. A emoção faz a análise derrapar. No entanto, registrar o passado não é necessariamente uma armadilha para entender o presente. Não há presente sem passado. Não há o jogo que a gente vê se não houvesse uma série de circunstâncias históricas que determinaram absolutamente tudo que se vê em campo, do peso da bola à velocidade do jogo. O futebol é uma sequência de adaptações históricas, mais do que criações que vêm do nada.

Um dos motivos de quem considera Messi superior a Pelé é atribuir a quem pensa o contrário justamente esse saudosismo tão combatido por muitos, mas que passei a achar tão bonito com o tempo. A carga de desinformação sobre o passado também é assustadora. Por exemplo, há argumentos apontando que Pelé só venceu três Copas do Mundo por causa dos colegas em campo. Em 1958, com 17 anos, entrou no meio do Mundial após partidas que não convenceram. Evidentemente que Garrincha, Zito e Vavá ajudaram a melhorar o time. Mas o diferencial, o ponto de desequilíbrio, era Pelé. Aos 17 anos. Em 1970, o Brasil chegou desacreditado à Copa. Pelé, além de ser novamente o fator que desequilibrava, era um ponto de referência de uma seleção com diversos craques.

O passado precisa ser fundamentalmente ser observado quando se faz uma comparação. Ele não é uma roupa que não nos serve mais. Ele é a roupa que a gente usa, só que repaginada, atualizada e contextualizada.

A falácia do futebol antigo

Santos de 62/63: o melhor time do mundo

Outra questão fortemente abordada é a hipótese de que o futebol nos anos 1950, 1960 e 1970 era “mais fácil” que o futebol atual. Isso me faz lembrar um pouco do que a sociedade tem por si de atribuir à linha temporal um sentido evolutivo, uma curva crescente e não uma simples definição que que a sociedade é marcada pelo dinamismo que leva em consideração diretamente todas as alterações sociais, políticas, econômicas e tecnológicas. Quando começaram os estudos sobre redes sociais, por exemplo, as perspectivas eram majoritariamente otimistas. Hoje, já se discute se esta é uma evolução civilizatória, já que o ambiente das redes sociais vem se tornando cada vez mais tóxicos. Este é um pensamento altamente tecnicista, fordista e burocrata. É, também, uma salvaguarda contemporânea perceber a ideia de que “o nosso tempo” tem mais valor e que “os outros tempos” são efeitos saudosistas. A rigor, não gosto de atribuir a isto um rótulo de “ultrapassado”.

Porém, o pensamento de que antigamente se jogava contra um monte de perna de pau e que o futebol era disputado com passos de tartaruga resvala em diversas arapucas que rapidamente deslegitimam a análise em si. Obviamente que o futebol de 50 anos atrás tinha uma velocidade menor. Mas também requeria uma técnica mais apurada, pois o jogo permitia isso. O Campeonato Paulista, por exemplo, era uma competição difícil. Os craques não saíam do Brasil. O Santos de Pelé enfrentava o Corinthians de Rivellino, o São Paulo de Gérson e o Palmeiras de Ademir da Guia. Na Taça Brasil ou no Roberto Gomes Pedrosa, encontrava-se com o Cruzeiro de Tostão e Dirceu Lopes ou com o Botafogo de Garrincha e Didi. Mesmo as equipes que não tinham esse potencial possuíam craques em seus elencos.

Um erro maior é acreditar que Pelé marcou seus gols contra times do exército. Esta é uma bobagem sem tamanho. Os campeonatos estaduais, tão esvaziados hoje em dia, funcionavam como uma primeira divisão nacional. Não é um exagero dizer que a Portuguesa dos anos 1950 e 1960 (que revelou Félix, Djalma Santos, Leivinha, Zé Maria e Marinho Peres, todos jogadores de Copa do Mundo) ou que o Bangu dos anos 1960 (de Ubirajaa, Paulo Borges e Fidélis) eram superiores a boa parte das equipes que disputam o Campeonato Espanhol (inclusive ao famigerado Bétis de Quique Settién).

Por fim, o argumento mais esdrúxulo que li foi o de que “Pelé se fosse bom iria para a Europa”. É de uma pobreza de conhecimento tão grande que só menciono aqui para agregar ao festival de absurdos que foram escritos nesta semana. O Santos de 62/63, bicampeão mundial, era o melhor time do planeta. Se não jogava na Europa, talvez seja, meu caro, porque naquela época não havia decreto proibindo que um time fora do continente europeu fosse o melhor do mundo. Pelé não ganhou a Champions? Pelé não disputou a Champions League, que àquela altura talvez não fosse o maior campeonato do mundo. Mas Pelé foi além. Bem além do que “ganhar a Champions”.

Respeitar o contexto: porque Pelé muda o futebol

Pelé beija Muhammad Ali: porque ele muda o esporte.

É difícil entrar neste capítulo sem abordar a questão da metodologia (não se faz comparação sem metodologia, o nome disso é chute). Porém, antes de adentrar nessa esfera técnica, porém necessária, é preciso novamente iluminar esse caminho com um facho de pura contextualização. O futebol brasileiro em 1958 era traumatizado pelo Maracanazo. Parecia que nunca haveria mais a chance do Brasil ser campeão do mundo. O futebol mundial era impactado pelo Honved e pela Hungria, que marcou o que eu chamo de uma espécie de “revolução industrial” no esporte, com uma sutil guinada do intuitivo para uma produção em série, algo que marcou, por exemplo, a Copa de 1966. Uma escola europeia, bem sedimentada nos anos 1930, atribuía ao esporte um senso coletivo que desmanchava algum sentido amadorístico nessa “Era Antiga” do esporte. Resumidamente, era regra pensar no esporte como um todo.

Havia craques, evidentemente. Mas não havia a compreensão de entender o craque como um organismo completo. Alguns chegaram perto, mas se perderam em reviravoltas magníficas. Di Stéfano era o craque sem nacionalidade, o homem do Real Madrid e de várias seleções (Argentina, Colômbia e Espanha). Puskas era o craque que não alcançava a perfeição física. Zizinho o craque traumatizado por uma derrota. Fritz Walter e Obdulio Varela eram grandes referências morais. Embora brilhantes, não agregavam valências que compunham algo próximo de uma perfeição. Isto veio com Pelé. Não faltou nada ao brasileiro. Nada. Campeão do mundo aos 17 anos como protagonista. Artilheiro de diversas temporadas consecutivas. Fisicamente superior. Domínio perfeito de todos os fundamentos (até marcação, veja vídeos da Copa de 1970). E, além disso tudo, um sentido místico que faz parte do esporte (que, por mais que os tecnicistas neguem, também pertence a Messi e a Cristiano Ronaldo). Pelé redefine o conceito de individualidade, do que é um jogador de futebol em seu máximo para tentar ser alcançado. Unia o drible, o sentido coletivo, a capacidade física, o chute, o passe, a inteligência e um nível mental nunca visto antes. Os únicos fracassos de Pelé aconteceram quando ele se machucou. Pelé não tem uma grande derrota entre 1957 e 1970. O Santos não ganhou tudo, mas nenhuma equipe conseguiu alcançar um nível de superioridade tão grande como o time da Vila Belmiro nesse período. Contra adversários qualificados, conforme mencionei anteriormente.

Além disso, Pelé transcende somente o seu papel no campo de jogo. Transforma o seu milésimo gol em evento, recupera a autoestima de um povo marcado por um período sombrio, é respeitado em todo o planeta e, de fato, “para uma guerra”. A história da humanidade no pós-guerra é repleta de acontecimentos marcantes. Pelé, como Muhammad Ali, representa o nível máximo que um atleta de uma modalidade pode representar.

Entretanto, o argumento mais forte de quem acredita que Messi ou Cristiano Ronaldo são os maiores da história diz respeito a uma comparação de números na carreira dos três. Vamos à questão metodológica, portanto.

O problema metodológico: porque não se faz uma análise comparativa somente com números

Esqueça o Neymar nessa comparação, por favor. Só colei na íntegra a proposta do Sportv para ilustrar os números de quem importa. Neymar ali é uma colocação “política” da emissora.

Antes de mais nada, temos que entender o futebol como uma manifestação da sociedade, algo que eu repito sempre que faço uma análise. A gente vai aprendendo algumas coisas. A citação, aparentemente uma jogada pedante de minha parte e que será confundida com alguma dose de arrogância, é de uma referência difícil de ser contestada. Busco em Max Weber (1864–1920) o que ele pensa sobre uma análise comparativa de fatos sociais: “baseia-se em uma estratégia centrada na busca, não do paralelismo existente entre variáveis, mas sim, na comparação entre casos históricos, tomados em sua diversidade e singularidade”. Deixa sem referência de ABNT. Ou seja, a comparação de eventos significativos para a sociedade (Pelé e Messi, por exemplo) é, em sentido amplo, permitida somente a partir do alargamento de diversas variáveis, entre elas, os números.

É claro que essa coisa meio enfadonha de estabelecer um método para alicerçar uma análise é um tanto quanto chata no meio do futebol. Afinal de contas, cada um entende o jogo de uma forma. No entanto, é uma resposta para algumas coisas que li, como “esqueça as verdades que foram impostas”, “deixe de lado o saudosismo” e “abra sua mente”. Fora que, além de tudo, os argumentos para esta hipótese foram baseados em métodos. Entretanto, qualquer introdução à análise (seja qual for) já apresenta que os números (precisos) se associam muito mais a uma análise quantitativa que qualitativa. Isto é, fica praticamente inviável atribuir qualidade sem levar em conta as outras variáveis em jogo.

Uma análise nunca será 100% precisa nas ciências sociais. Há um nível de subjetivismo enorme naquilo que o homem produz em sociedade. Ainda que imprecisa, só haveria materialidade para uma comparação que atenda a uma quase precisão se houvesse a seguinte prova:

a) Se Messi e Cristiano Ronaldo fossem submetidos a exatamente tudo aquilo que Pelé viveu: mesmo uniforme, mesma bola, mesmas competições, mesmos colegas, mesmos desafios e mesmo contexto de época.

b) Se Pelé fosse submetido a exatamente tudo que Messi e Cristiano Ronaldo vivem.

São dois cenários impossíveis. Pelé completa 79 anos em 2019. Acho (só acho) que ele não conseguiria jogar como Messi e Cristiano Ronaldo aos 79 anos. O argentino e o português não eram nascidos na época em que Pelé atuava. Ironias à parte, digo que não há materialidade suficiente para que se pressuponha uma análise numérica que de fato possa ordenar alguma superioridade de um ou outro. Porque os contextos de cada um são diferentes. Porque há uma necessidade de se identificar todos os fatores de espaço-tempo do entorno de cada um para que se identifique quem de fato é o melhor. Algo que um cálculo de média de gols passa bem longe de aferir.

Conclusão: mas afinal, se não dá para comparar desta forma, por que eu escrevi que Pelé é o maior da história?

Pelé: o maior da história

Qualquer comparação que se faça entre estes três sujeitos (Pelé, Messi e Cristiano Ronaldo) é acompanhada, evidentemente, de uma alta carga de subjetivismo, de intuição e de empirismo. Porque, ao contrário do que os tecnicistas afirmam, o empirismo que respeita tempo-espaço é uma prova concreta da experiência de campo de cada um. A intuição remete a um tipo de metodologia mais correta neste caso, a de atribuir às questões do futebol uma análise fenomenológica do fato social. Eu sei, é academicismo, mas fight fire with fire, certo? Venham com números e lhes apresentarei os fenômenos. Qualquer análise comparativa baseada em números dará somente uma comparação quantitativa e nunca qualitativa.

Mas é claro que é possível comparar Pelé com Messi e Cristiano Ronaldo. Os números são um referencial, um ponto de partida, um quadro, um recorte. A partir deste referencial, existe a possibilidade de discorrer sobre aquilo que cada um fez ou faz. Aí entra a tentativa de entender os três fenômenos: conferindo-lhe papeis essenciais que respeitam os contextos que os envolvem. Aquilo que coloquei sobre Pelé e o que a gente vê semanalmente sobre Messi e Cristiano Ronaldo. Ambos são espetaculares. Mas não conseguiram aquilo que Pelé fez. Não são os números. São os fundamentos, a realidade, o contexto e a sua totalidade social: queiram ou não, o futebol se divide antes e depois de Pelé. Nunca o conceito de craque foi tão aplicado como em sua plenitude com o brasileiro.

É possível também identificar o desprezo que os novos analistas têm de quem foi testemunha presencial na história. Há uma contradição. Se, para eles, Messi e CR7 são os melhores por aquilo que eles observam toda semana, por que diabos quando alguém que diz ter visto Pelé jogar é classificado como saudosista? Eu tento relevar e admirar a impetuosidade do jovem analista de futebol. Ele é tão empolgado com o objeto de análise que permite classificar só o saudosista como passional. Entendo. Messi e CR7 são, há mais de dez anos, bem à frente dos outros, os melhores jogadores de futebol do planeta. Estão entre os 10 maiores da história (também em análise que leva em conta coisas que perpassam os números). Mas não são Pelé. E, até surgir um jogador que reinvente de forma definitiva o que é ser craque, Pelé seguirá imbatível. E será preciso de um argumento melhor do que números ou apelar para o tal do saudosismo para que esse delicioso dogma insofismável deixe de ser uma das poucas verdades absolutas que o futebol ousa em manter.

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Carlos Guimarães
Carlos Guimarães

Written by Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.

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