O debate isolado: porque a necessidade de pertencimento supera a vontade de pensar
O pior sentimento que eu tive no final do ano passado foi diferente de qualquer outro. Ao invés do tradicional balanço de proezas e fracassos que as pessoas fazem quando uma temporada se encerra, eu percebi que estava completamente desconectado das pessoas. Um sentimento de incompatibilidade que pairou sobre mim e que foi resultado de uma série de acontecimentos que abalaram o ano de 2018. Foi quando percebi sobre o que dá um certo sentido à vida: ela não é somente sobre sucesso, dinheiro, poder ou plenitude. Ela é sobre pertencimento.
O melhor texto sobre isso foi escrito com muito talento pela Eliane Brum para o El País. O texto é longo, mas eu, se fosse você, leria cada linha dele. Resumidamente, Jair Bolsonaro foi eleito presidente por uma questão de pertencimento. Quem votou nele, sentiu-se pertencente a todo seu discurso. Discurso não é só a fala. São os tropeços no português, a truculência que é vista como sinceridade, a ignorância que é vista como simplicidade, a falta de filtros vista como humildade. Bolsonaro é, também, um grande produto midiático e, como sabemos, cá estamos para servir à mídia. Ela nos conduz inconscientemente para o absurdo e para a coerência num piscar de olhos. Bolsonaro, portanto, foi trabalhado para ser “um de nós” e, nesse ponto, até acredito que ele seja mesmo. Não há nada de extraordinário ou novo no que ele pensa. O que aconteceu foi uma incrível empatia entre ele e o povo, num posto em que ele se colocou como somente mais um. Não há uma sensação maior de pertencimento do que aquela de ver um político que é como a gente.
Em contrapartida, havia um pensamento na esquerda que se distanciava daquilo que é a esquerda em sua gênese. Eu larguei a esquerda brasileira quando a Márcia Tiburi, candidata ao governo do Rio de Janeiro com votação pífia, três dias depois das eleições em primeiro turno, chamou as pessoas para uma Live no Facebook para uma reflexão sobre o país utilizando um texto do Adorno. Ali, eu vi que era uma batalha perdida. Você não consegue levar humildade a quem já possui o senso de autoridade de assunto através daquilo que a pessoa conquistou. Além da falta de eficácia, gerou uma repulsa enorme devido ao distanciamento do que se precisava naquele momento (votos para Haddad) e do que ela quis fazer (live sobre Adorno? foi sério isso?). Na mesma época, escrevendo sobre as dificuldades do povo em se alimentar, recebi um recado dizendo que o espaço mais democrático de Porto Alegre era a Lancheria do Parque. Eu adoro a Lancheria, mas vamos ver bem essa democracia toda: será que para as populações (fonte: SMURB) do Rubem Berta (87.367 habitantes), Sarandi (59.707 moradores), Restinga (51.569 habitantes) e Lomba do Pinheiro (51.415 habitantes), a Lancheria (dois ônibus e mais de uma hora de deslocamento para cada um desses 250 mil habitantes) é de fato um local “democrático”? Aí, percebi sobre o que é a esquerda portoalegrense, clássica, histórica, cheia de clichês e meio produzida em série: um zumbi que perambula entre as ruas da nossa Zona Autônoma Permanente dos intelectuais, que se concentra no eixo entre o Bom Fim e a Cidade Baixa.
Entre uma direita que só olha pra Deus acima de tudo e para o Brasil acima de todos e uma esquerda masturbatória, a minha sensação de pertencimento se exauriu. Passava a não pertencer a absolutamente nenhum grupo ideológico. Ou, ao menos, não compartilhava das experiências, discursos e atitudes daquele grupo que melhor me define — que é a esquerda. Lá estávamos debatendo sobre discursos lunáticos, ciclovias e sarau enquanto, no estado de hipnose enfeitiçada pelo próprio umbigo, entregávamos uma faca, um queijo e uma faixa presidencial. Porque a sensação de pertencimento ao que Bolsonaro dizia era clara. A sensação de pertencimento ao que a esquerda dizia só servia pra meia dúzia de aspirantes a doutorado de humanas (eu sou uma contradição, vocês sabem disso).
No Twitter, coloquei minha posição sobre esta, digamos, esquerda deslumbrada. Pela quinta vez (sou insistente), minhas críticas foram desqualificadas por eu ser branco, hétero e homem. Uma pessoa me chamou de machista e misógino porque critiquei Gleisi Hoffman e Márcia Tiburi. Outra, que os “brancos, homens e letrados da esquerda” têm a pretensão de dizer quais pautas importam e quais não importam. Outras, que não era o meu lugar de fala. Descobri, então, que as pessoas não querem mais te ouvir. Elas já programaram as suas verdades absolutas, seus chavões, seu senso comum de estimação. Que, ali, eu fugia ao pertencimento natural daquele grupo que eu criticava: se eu, branco, homem e hétero, fosse mais uma voz a só combater Bolsonaro, minha condição de branco, homem e hétero não importaria. Como eu apontei o problema para o grupo, eu não pertencia mais a este grupo. Eu seria desqualificado por ser branco, homem e hétero. Branco, homem e hétero para a esquerda tuiteira só serve se for mais um deles. Caso contrário, deixa de pertencer ao grupo e se torna mais um branco, homem e hétero, mas machista, homofóbico e racista. Em tempo: as cinco pessoas que me disseram isso não são pobres. Nem negras. Lugar de fala só se a fala for contra o grupo que pertenço, obviamente.
Há, além do pertencimento, uma relação de poder. O discurso que produz o pertencimento também é usado como uma manifestação de um sentido de autoridade que tal grupo julga ter sobre os outros. Poderia ser somente falta de autocrítica e de humildade, mas é mais que isso. Como eu estudei algumas linhas sobre discurso, análise de discurso e o discurso como poder, julgo saber mais ou menos do que estou escrevendo. O discurso é usado como instrumento para: 1) fazer parte de um grupo; 2) produzir dominação de um grupo sobre outros grupos e 3) levantar uma autoridade que legitima o grupo. Logo, se eu estou desafiando todo esse discurso, que é pré-moldado, piegas, produzido em rede social, pseudo-lacrador, falso moralista e sectário, as minhas condições básicas são transformadas num empecilho para que meu próprio discurso (não pertencente) seja deslegitimado. O “machista/misógino” é só um bônus.
Tentei bater um papo com uma pessoa de vinte e poucos anos esses dias. A cada três palavras, uma era um meme. “Sextou”, “white people problems”, “top”, “é us guri” e por aí vai. Era um exemplo cristalino de como as novas gerações se apropriam de um vocabulário apenas para pertencer. Já ouvi isso também de gente de trinta e poucos ou de quarenta e poucos. No caso descrito aqui no texto, o pertencimento também se dá por quem debate política. Se, de um lado, o combo “branco, misógino, homofóbico” é um combo que coloca no mesmo balaio o mais perverso dos racistas e o menino que quer dar uns beijos na balada, pelo outro lado os termos “marxismo cultural”, “gramscismo”, “organização criminosa” e “ideologia de gênero” também são repetidos à exaustão por uma direita robótica, sem pensamento original, que ouve qualquer coisa de seus gurus para aplicar ao seu vocabulário. São dois discursos programados, dogmáticos, engessados que colocam uma barreira em quem tenta argumentar com qualquer um dos lados. Logo, quem não segue esse tátibitáti, tá fora. Não pertence.
Portanto, no Brasil esquizofrênico contemporâneo de redes sociais, o que vale é pertencer. Ou é Parcão ou é Cidade Baixa. Ou é “lugar de fala” ou é “marxismo cultural”. Ou é “cristão/conservador” ou é “desconstruindo mitos”. Não pertencer é uma condição dolorosa que leva ao isolamento ou à alienação. Não sei ser alienado. É terrível observar que o único diálogo possível só existe quando o discurso é apropriado. Escolho o isolamento. Sigo de esquerda, pensando no pobre (esses aí tão abaixo do cu do cicloativista, coitados), nas políticas sociais e na inclusão das pessoas. No transporte público barato, no bolso do trabalhador e em quem quer comprar uma casa própria. Na educação e na saúde pública, na assistência aos necessitados, nos moradores de rua. Nas coisas reais. Não na cartilha dogmática que os dois lados possuem e que, revestidos de preconceito, arrogância e cegueira, desqualificam aquele que ousou criticar, por exemplo, uma política umbiguista, ensimesmada, afetada e hermética. Porque todo grupo precisa ter as suas diretrizes. Eu prefiro ser aquilo que eu acredito, mesmo que seja fruto das minhas contradições. Se as regras são estas, prefiro não pertencer.