Nossos ídolos ainda são os mesmos

A morte de Ranzolin e a mitologia de uma geração que nos deu sentido

Carlos Guimarães
5 min readAug 17, 2022
Foto: Emílio Pedroso / Agência RBS

Volta e meia, sou perguntado sobre as qualidades do rádio esportivo do Rio Grande do Sul, que se juntam àquelas que já conhecemos: combativo, sério, descritivo, jornalístico. Talvez por descuido ou por ser algo complexo, sempre me esqueço de dizer qual a principal característica nesses 90 anos de transmissões esportivas em emissoras gaúchas. O radiojornalismo esportivo gaúcho é, acima de todas as outras coisas, mitológico.

Não há no jornal, na televisão ou mesmo no rádio popular, jovem ou jornalístico, tamanha produção mitológica quanto no rádio esportivo aqui no estado. Percebi isto quando comecei as minhas pesquisas sobre os comentaristas, que gerou o livro O Comentarista Esportivo Contemporâneo (Appris, 2018). Minha hipótese, confirmada através das análises, de que há um novo modelo de comentário no rádio de Porto Alegre, sempre foi atravessada por essa mitologia. E, curiosamente, percebi que o embrião desse formato começa justamente por um dos principais nomes da nossa imprensa, Ruy Carlos Ostermann.

Em 2019, quando recebi o convite para escrever a biografia do Professor, tinha em mente aquela ideia do pesquisador. Nunca me esqueço do primeiro ensinamento do Juremir em suas aulas: “pesquisar é o ato do desvelamento”:

Desvelar é tornar visível o que tornou-se escondido. Tirar o véu. Tornar visível. Reconhecer. Tornar claro. Fazer-se conhecer.

Um mito é uma construção de sentidos em torno de uma figura ou de algo que recebe essa aura inconteste, uma referência magnânima, infalível; aquele que, quando chega a este posto, é livre de qualquer ressalva. A palavra anda meio perdida entre resvalos e devaneios coletivos, mas quando alguém chega à sua mitificação, significa que há, sobre esta pessoa, uma admiração enorme que se transforma em devoção.

Engraçado que na minha primeira bateria de entrevistas para a biografia, minha intenção era desmitificar Ruy Carlos Ostermann. Desisti, porque é impossível retirar-lhe aquilo que foi construído e conquistado. É uma ousadia que não sou capaz de cometer. Sou pretensioso, mas entendo meus limites. Perguntei para uma pessoa sobre o mito e o homem e a resposta embasou praticamente toda a sequência da pesquisa: “o homem é o mito e o mito é o homem”. Pronto, não teria como fazer isso. Minha apresentação do livro, inclusive, é esta.

Converso muito sobre isso com algumas pessoas. Entre elas, com meu colega e amigo Luís Magno, talvez o maior devoto dessa mitologia que conheço. Eu brinco com Magno e com outros colegas sobre a separação que faço entre os jornalistas esportivos gaúchos: há os que gostam mais de futebol e há os que gostam mais de rádio. Magno, definitivamente, enquadra-se nessa segunda turma. Sabe muito sobre o assunto e, efetivamente, vive para e com essa mitologia. Depois que o Ranzolin nos deixou, nesta quarta-feira, 17 de agosto, o Magno me escreveu o seguinte: “nós somos os netos deles”. Respondi a ele: “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém”.

Apareceu, mas não como eles. E quem são eles? Os mitos. E essa é a diferença. Sim, apareceu muita gente boa, narrando muito, comentando demais e reportando perfeitamente. Mas não se tornaram mitos porque não havia mais lugar para os mitos. Quando falamos sobre Pedro Carneiro Pereira, Armindo Antônio Ranzolin, Lauro Quadros, Ruy Carlos Ostermann, Haroldo de Souza, João Carlos Belmonte, Antônio Augusto e, mais recentemente, Cláudio Cabral, especialmente esses, estamos falando sobre uma mitologia construída em torno de uma geração que disse como que as gerações posteriores deveriam fazer.

Essa turma, com exceção de Pedro Carneiro, não faz parte da chamada primeira geração do rádio esportivo gaúcho. A “turma dos anos 50” foi Cândido Norberto, Mendes Ribeiro, Adroaldo Streck, Enio Melo e outros. Mesmo Cândido, um dos maiores nomes da história do rádio gaúcho, não conseguiu, dentro do jornalismo esportivo, chegar a esse status. Veio essa segunda geração, começando nos anos 1960 e passando para a década seguinte para que tivéssemos nossos cânones.

Creio que há alguns pontos para que isto tenha acontecido: o sucesso nacional da Dupla Grenal, primeiro com o Inter e depois com o Grêmio; a disseminação do rádio como meio de transmissão dos jogos de futebol; a necessidade de consolidação da imprensa gaúcha como marca dentro desse cenário e, principalmente, o talento dessa geração. Tínhamos tudo: o narrador tecnicamente perfeito (Ranzolin) e o popular (Haroldo); o comentarista rebuscado (Ruy) e o descontraído (Lauro); o repórter carismático (Belmonte); o plantão infalível (Antônio Augusto). Foi a geração que chegou e disse o seguinte: “é assim que vocês, a partir de agora, vão fazer”.

Ranzolin nos deixou aos 84 anos. Não caberia contar aqui alguma história minha sobre o Ranzolin ou fazer mais uma homenagem entre tantas que pessoas bem mais próximas dele estão fazendo, com muito mais justiça, categoria, elegância e emoção. Mas caberia, especialmente depois de perceber que se trata de algo muito maior que aquilo que estamos já predispostos a imaginar, em dois aspectos. O primeiro, é que nossas referências estão nos deixando. Depois que mergulhei no processo de pesquisa sobre o Professor, percebi uma dimensão que sequer estava disposto a encarar, mesmo como fã de rádio. Aqueles que disseram “como é, é isso” estão nos deixando. E o segundo ponto é, mesmo buscando compreender todas as tensões entre tempo, espaço e o modo com que a comunicação atual se desenvolve, esse legado nenhuma outra geração vai deixar. Porque esse legado é mítico, é transcendental. Ele nos escapa de uma mera avaliação técnica ou científica. É um legado de sentido para a nossa profissão. Foi o que essa turma nos deu: sentido para seguir, continuar e fazer.

Não haverá outro Ranzolin. Poderá haver alguém tecnicamente superior, com mais carisma, com mais informação, com mais conexão com o público. Mas ele não será o Ranzolin. Porque o Ranzolin, como o Ruy, o Lauro, o Belmonte e outros, atingiu um patamar que não é meta, porque se for objetivo, não alcançaremos. Ele virou propósito. É engraçado e melancólico perceber que, depois de quase 30 anos da despedida de Ranzolin, ele ainda é tudo isso. E também é engraçado e melancólico perceber que nossos ídolos ainda são os mesmos e não é porque eles nos ensinaram. É porque eles existiram dessa forma. Só é mito quem transcende.

--

--

Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.