Ideário utópico: porque sonhar é melhor que viver

Carlos Guimarães
6 min readMay 2, 2018

--

Belchior escreveu que viver é melhor que sonhar. Ele também escreveu que sua alucinação era suportar o dia a dia e que seu delírio era a experiência com coisas reais e, ao que parece, ninguém entendeu muito. A obra de Belchior parou em imagem no Facebook, o nosso para-choque de caminhão pós-moderno. Adoro MPB, mas não sei o que Belchior diz, ah, se soubesse, não fosse tão infeliz. É duro suportar a vida, é duro ter que, diariamente, perceber que nossos sonhos, ao contrário do que os mineiros diziam, envelhecem, perecem, definham e morrem. Um sonho não se sustenta depois da primeira decepção. Por isso, a gente romantiza a vida. Não porque a gente quer, mas porque a gente precisa. A gente precisa dos carneirinhos para embalar nosso sono, do “amar e mudar as coisas” para que a gente se sinta amado, dos planos de férias para se sentir vivo. A gente romantiza a vida porque a gente precisa de objetivos, de metas e de direção. Sobretudo, a gente romantiza a vida por preservação. Por senso de defesa. Por torpor, estado alterado da mente. É como usar uma droga sem dano físico. Romantizar significa idealizar, que significa estabelecer um objetivo a ser alcançado. Idealizar é promover o nosso estado utópico da dependência por algo que não existe. Idealizar é melhor que pensar. Sonhar é melhor que viver.

A fé, por exemplo, que é essa força de vontade pessoal que nos faz mover para algum caminho que nem a gente sabe dizer qual é, é uma espécie de ideário utópico. A gente acredita em algo porque, culturalmente, foi ensinado a nós que o sentido da vida é fazer o nosso melhor e alcançar os nossos sonhos. A autoajuda, presente intensamente nas redes sociais, que, como todos sabem, têm como função principal ser um divã bancado pelo Zuckerberg et al, é um natural combustível de pílulas diárias de conforto e boas sensações. Não à toa, o mundo atual, doente por natureza, vicia-se cada vez mais nesse negócio de coaching à distância. A gente para para ler palavras bonitas na Internet ou nos muros pichados das nossas capitais — e depois, posta, claro. Assim, sentimo-nos confortáveis diante desse freak show sem anestesia que é o nosso cotidiano.

A autoajuda de internet e a fé são exemplos de como a indústria da mente humana age em nome de alimentar cada vez mais nossas inseguranças, neuroses e, veja só, nossos sonhos. Nossos sonhos são explorados diariamente, desde que somos crianças. As brincadeiras infantis, em geral, são simulações de atividades adultas nem tão nobres assim. Os ídolos são pequenos espelhos de gente que um dia a gente quer ser quando crescer. A melhor banda de todos os tempos da última semana é o rockstar que a gente quer ser. Nossa infância é baseada numa produção incessante de ideários, de ilusões, de sonhos. A fábrica de sonhos é o negócio do século. Tudo o que um sonho precisa para ser realizado é alguém que acredite que ele possa ser realizado. Mas a gente está preparado para o meio do caminho todo? E quando esse sonho nunca chega?

As pessoas não estão preparadas para a decepção. Aliás, junto a decepção aos outros males da pós-modernidade, que são a culpa, o tédio e a irrelevância. É um dos quatro — por enquanto — problemas da vida pós-moderna. A gente não é ensinado a se preparar para se decepcionar, para não se culpar, para evitar o tédio e para ser irrelevante. A vida não é sobre sucesso, nada disso. Ou, ao menos, não esse sucesso convencional que nos empurram. A vida é sobre não ser culpado, não sentir tédio e se sentir relevante. E sobre não se decepcionar. Tenho certeza que os golpes mais profundos na vida de cada um de nós são frutos de uma expectativa frustrada, de um soco que chega de quem você nunca espera, de uma revelação que muda aquele que você admira. De um sonho não realizado.

Pensei sobre isso quando li uma postagem no Instagram de um colega. “Faz o teu melhor e confia”, numa pichação em um portão de ferro qualquer. Depois, um cara, simpático e sorridente, me parou na Praça da Alfândega, dizendo que trabalhava numa assessoria, era estudante de jornalismo e que seu sonho era trabalhar em rádio. Tenho arquivado na minha caixa de e-mail dezenas de currículos que se misturam entre a necessidade de trabalhar e o sonho de ser um jornalista esportivo. Não são poucos. São muitos. Porque houve, talvez por necessidade, uma glamourização errada sobre a minha profissão. Muitas vezes critiquei Spotlight por aquilo que ele provocava nos jovens aspirantes a jornalista. Se, por um lado, servia para dar dignidade a uma profissão que diariamente perde sua credibilidade, atribuindo a ela nobreza, valores éticos e sentido social, por outro, servia para idealizar uma rotina de trabalho que funciona como absoluta exceção dentro da normatização da nossa rotina. Ou seja, Spotlight ajuda a produzir uma expectativa que não é correspondida em 99% dos casos. O que acontece quando uma expectativa não é alcançada? Estado profundo de decepção.

Há um espanto, para mim, em como, por exemplo, as universidades compraram Spotlight. O local onde é necessário ensinar e apresentar uma realidade com toda a sua crueza é transformado numa mini fábrica de sonhos para os focas (jargão jornalístico para iniciantes). Espanta, ainda mais, em ver como as empresas lidam com isso, desconsiderando problemas reais, como falta de salário, de estrutura, de condições normais de trabalho, prendendo-se no discurso do “jornalismo como função social”. Confesso que já caí nessa, mas aí vem a maldita decepção que me faz repensar diariamente sobre todos os sonhos que eu tive e que, aparentemente, tornam-se distantes de realizar. É como se a comunidade jornalística vivesse numa ilha da fantasia permanente: os acadêmicos estudam “novas tendências” enquanto tem gente largando o jornalismo para ser comerciante; as empresas apresentam “ideias geniais de convergência” enquanto seus funcionários pedalam nos boletos que não conseguem pagar; os sindicalistas se seduzem pela militância enquanto sua classe definha, desunida, mal remunerada, sem credibilidade, sem consciência, sem nada; e nós, jornalistas, fingimos ser relevantes enquanto, no fundo, ninguém mais se importa com o quatro poder. Poder que pertence a meia dúzia de gatos bem pingados, refrescados por seus aparelhos de ar condicionado em suas casas com segurança privada, com seus cabelos com gel e barba milimetricamente aparada, com seus sapatênis, pulôvers e óculos de aro grosso, pagando de bacana num condomínio fechado de Atlântida, deliciando-se com suas meritocracias de papel, com seus sorrisos cheios de dentes, tomando seu uísque comprado no free shop de Miami, falando sobre startup, curadoria ou sinergia, enquanto a massa, falida, se orgulha em frequentar o sujão da Cidade Baixa porque alguém disse que “jornalista tem que ser chinelo”. “Faz o teu melhor e confia”, certo. Na crise, trabalhe.

A lógica que alimenta essa cadeia foi concebida, produzida e difundida por nós, que estamos no meio do furacão. Jornalista tem pavor de ser irrelevante. Jornalista tem orgulho do próprio fracasso. Jornalista ajudou a criar esse ideário onde ele é um misto de detetive particular, policial, juiz, astrônomo, agricultor, técnico de futebol, diretor de cinema, músico, político e administrador. Fornece ao público a mais desonesta de todas as desonestidades intelectuais: que somos donos da verdade, que somos a voz do povo, que somos escultores do cotidiano. Dançamos numa corda bamba entre o mundo real e o imaginário. Somos tão egocêntricos que não criamos um amigo imaginário. Criamos um eu imaginário, o intrépido, socialmente relevante e participante das decisões dos poderes instituídos. O problema é que a gente acredita em todas as expectativas geradas por essa imaginação. É quando chega a decepção, tarde demais, aquela que nos conduz a uma via de contramão ao imaginário depositado em cada um dos nossos sonhos. Sonhos envelhecem e morrem.

Não estamos preparados para essa decepção. Pior, somos produtores das nossas próprias decepções, quando acreditamos nos outros e em nós. Não na realidade real (perdão da redundância, mas é absolutamente necessária). Mas numa realidade paralela, onde todo nosso ethos é voltado para valores que inexistem. Não somos deuses para sermos imparciais, não somos a justiça para concedermos veredictos, não somos especialistas para sermos a voz da certeza de tudo. Somos trabalhadores que não gostam de trabalhar. Temos vergonha da labuta porque, no fundo, trabalhar não faz de ninguém relevante. O que faz, nesse mundo pós-moderno, é passar uma ideia de sucesso, longe de decepções, culpas, tédios e irrelevâncias. A gente não deveria fazer porque acredita, mas deveria fazer porque temos aptidão, técnica, ensinamento e, sim, talento. Mas esse meu discurso também é utópico. É, como dizem alguns, uma violenta manifestação do meu recalque, das minhas frustrações e da minha miséria pessoal. É fruto das minhas decepções com meu meio, com muitas pessoas e com aquilo que faz parte do meu entorno. Porque alguns sonhos envelheceram. Outros morreram. Talvez a vida seja exatamente isso: um eterno cair, levantar, acreditar e acontecer. Não do jeito que eu sonhei. Mas do único jeito que eu sei fazer.

--

--

Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.