Escravos do Zeitgeist¹: comunicação e comportamento midiático no isolamento social
As lives, a nostalgia, o BBB e o lacre: um ensaio sobre o espírito de um tempo que fala muito e ouve quase nada.
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Nosso tempo é um tempo de nascimento e de transição para um novo período: o espírito rompeu com o mundo de seu existir e representar que durou até agora; ele está a ponto de precipitar esse mundo no passado e se concentra no trabalho de sua própria transformação. (HEGEL, 1986, p. 18[2])
Um mundo a quatro paredes. O trabalho, o estudo e o lazer feitos de dentro de um quarto, na tela de um notebook, dedos que sem movimentam vorazmente manipulando um smartphone, com o visor repleto de aplicativos de videocamadas, redes sociais e joguinhos. Fluxo do WhatsApp acima do normal. Televisão ligada, rádio ligado, casa cheia de tantos sons e vazia de pouca gente. A pandemia do COVID-19 refaz hábitos, mas também desvela o comportamento midiático da sociedade contemporânea. Nunca consumimos tanta informação e nunca produzimos tantas relações comunicacionais. Mas de que forma a gente está fazendo isto?
A óbvia resposta é que fazemos, por forças maiores, à distância. Nossas mediações, interações e relações operam com a força tecnológica que aqueles mais otimistas preconizavam, ainda no Século XX, que o futuro da comunicação seria uma operação mediada por computadores. A ideologia da máquina alude ao pensamento heideggeriano sobre a atribuição de um novo sentido ao ser humano através da filosofia da técnica — algo que causa uma dependência e, ao mesmo tempo, serve como uma instrumentalização das nossas coisas.
A essencialização da técnica abriga em si o que menos poderíamos supor, o possível emergir da salvação. (HEIDEGGER, 2007, p.394[3])
Sem delongas sobre o complexo pensamento do filósofo alemão sobre a questão da técnica, o objetivo é entender, para os efeitos deste ensaio, a técnica como instrumento. A grosso modo, um meio que possibilita o comportamento, e não o que dita o comportamento. As tendências desse fazer comunicativo remetem muito mais a um fazer das coisas humanas no ambiente contemporâneo. Não se trata da técnica — ou da tecnologia — como reflexo ou consequência, mas sim de um dispositivo revelador dos comportamentos comunicacionais. Ela não nos salva, mas ela viabiliza, por vezes amplifica e, sempre, realça as nossas relações.
O que é presencial é guardado pela memória. A gente não grava nossas conversas. O que é distante é possível de ser documentado. Ou seja, construímos essa nova memória imediatamente. Esta talvez seja a alteração mais significativa que a tecnologia nos oferece. No mais, os recortes comportamentais de como estamos agindo são profundas manifestações de uma realidade que se materializa naquilo que a sociedade é. As redes sociais não são algo à parte da sociedade. Como todo e qualquer evento social, caminha com ela. Neste sentido, opera como um megafone da sociedade, expressando todo o Zeitgeist contido nela.
Chegamos ao ponto de desenvolver isto. O que é o tal Zeitgeist? É o espírito do tempo. Cada período tem a sua velocidade, sua dinâmica, seu modus operandi. Pois este espírito atual, confinado, em meio a uma pandemia, com as redes sociais operando como este megafone, ou, ao menos, como um instrumento de propagação das coisas, pode ser visto diante de comportamentos vistos nas redes que se disseminaram ultimamente.
O paradoxo da liquidez: uma antítese ao pensamento de Bauman
A passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” — ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. (BAUMAN, 2001[4], p. 7).
Zygmunt Bauman (1925–20017) foi o filósofo da liquidez. Tornou-se uma espécie de best-seller no meio acadêmico, fazendo com que boa parte dos intelectuais do mundo torcessem o nariz para ele. Com uma certa popularidade, Bauman desenhou as relações da pós-modernidade, embora rejeitando este termo. Prefere chamar os tempos atuais de “tempos líquidos”. Particularmente, acredito que outros pensadores, como Edgar Morin (1921-), definiram melhor o pensamento do Século XXI. Tenho um profundo respeito por Bauman, mas, de uns tempos pra cá, entendi que seu entendimento sobre o mundo moderno e sobre essa liquidez das relações se transformou em algo líquido. O paradoxo da liquidez. O conceito de Bauman ficou líquido. A pandemia do COVID-19 pegou Bauman de surpresa.
Bauman argumenta que as relações “pós-modernas” são líquidas, ou seja, moldam-se de acordo com o contexto, com o momento e com o tempo-espaço. Tais relações são voláteis, rapidamente absorvidas e descartadas. É a naturalização da experiência, aquilo que a gente recebe, usufrui e desfaz. As coisas duradoras, perenes e construídas dão lugar ao efêmero, à sensação, ao heat of the moment. Aplica-se aos chamados wanderlusts, às súbitas paixões, ao eu, aqui e agora. É a vitória do desencantamento: tudo aquilo que se recebe, precisa ser feito de maneira voraz, right here, right now, sem delongas, planejamentos ou qualquer coisa que transforme esse momento em algo que fica.
Em aplicativos de relacionamento, pessoas se autodefinem. Há o famoso espaço do “quem sou eu”, como uma espécie de carta de apresentação — ou de intenções — para que o usuário que está à procura de alguém tenha uma ideia — embora que produzida, não espontânea ou necessariamente sincera — de quem está do outro lado. Entre avisos políticos, advertências sobre profissão e autoelogios curiosos, um dos adjetivos mais presentes nesse campo se refere à intensidade. “Sou intenso(a)”. Penso sobre o que seria uma pessoa intensa. Ou não intensa. Mas, penso além: quando uma pessoa se descreve como intensa, o que ela quer dizer? Ela argumenta que cada dia é o último dia do resto de nossas vidas e que “vamos viver tudo que há pra viver, vamos nos permitir”. A rigor, é só a letra de uma música, mas os “tempos modernos” vieram com tudo para introjetar nas pessoas o conceito de liquidez. O brilho nos olhos, o imediatismo, a razão de sentir, experimentar e, enfim, viver, são características que se sobrepõem ao conforto da base, que é sólida.
Mas nem Bauman, nem o Lulu Santos e nem a pessoa intensa do aplicativo previram o isolamento social. Estamos confinados e tudo agora parece bem mais líquido que uma aventura programada de dois dias em Praga com uma mochila nas costas, uma ideia na cabeça e um crush de um dia. Agora, a vida parece líquida. Essa incerteza faz a gente procurar, curiosamente, o sólido. Eis o paradoxo da liquidez, a antítese de Bauman: quando a vida parece líquida, a busca é pelo sólido.
O sólido está na nossa família, nos nossos amores, nas nossas memórias afetivas, nas nossas coisas, nos nossos gostos. O sólido é aquilo que a gente construiu e não o que a gente experimentou. Não é o que foi descartado, não é o que foi volátil, tampouco aquilo que foi desprezado. É o que existe. O concreto. A construção das coisas, portanto, o sólido, é o primeiro lugar que buscamos quando a gente vê que tudo aquilo que deixamos escapar, porque o que é líquido não se pode pegar, não existe mais. A vida real é o sólido, o concreto, o táctil, o existente. A gente só quer um abraço de verdade de alguém que você terá vontade de abraçar de verdade pelo resto da sua vida. A gente só quer voltar a conversar, rir e até brigar com quem você sempre conversou, riu e brigou e não com aquele sentimento que você teve lá em 2006 e que se foi com o tempo e talvez você nem lembre mais.
O lugar das experiências é no nosso imaginário. Mas, quando a vida está ameaçada, o imaginário é só um lugar de sonho. Não existe sonho na sobrevivência. O que existe é uma inimaginável vontade de voltar ao tempo e trocar uma dessas experiências por um abraço de quem sempre esteve ali, para você, o tempo todo, com a solidez de uma rocha ou o conforto de um colchão, para que você se segure ou que segure quando você caia. Você não quer mais ser wanderlust. Você quer aquele conforto do útero materno, o beijo da pessoa amada ou o abraço do velho amigo. Ou o regozijo de uma velha memória. Sólidos. Como a vida é.
A indústria da nostalgia: no conforto da memória
O SporTV reprisou a campanha brasileira na Copa de 1982. O Mundial disputado na Espanha sempre gerou uma sensação de amor e ódio nos torcedores. No imaginário de uma geração que hoje é quarentona ou cinquentona, o time de Telê Santana era maravilhoso, mágico e perdeu a Copa injustamente. Para outros, era uma equipe pouco competitiva, “bailarina”, sem vocação para a vitória. Com a reprise dos jogos, creio que pouca coisa tenha mudado, embora, já que revi todos os jogos da campanha, o oito e oitenta típicos do brasileiro deem lugar a um meio-termo que rechaça tanto a magia quanto a fraude. Mas a vida não se trata de desconstruir mitos. Em tempos de isolamento, é o contrário: é na memória e nos mitos que residem as nossas sensações mais afetivas.
A nostalgia é uma zona de conforto. Ela traduz aquilo que vivemos e guardamos como algo bom, produtivo e amoroso. O que a memória guarda só se desfaz de uma forma: revisitando o fato. Não é o que acontece com essas reprises. Pelo contrário, elas só reforçam as sensações que as pessoas tiveram quando se depararam com o fato. Assistir novamente a um jogo de Copa do Mundo não é para desmistificar as coisas. Só um chatíssimo como eu, que por sua vez também é comentarista esportivo, que vai tentar decifrar o jogo do Brasil para oferecer ao público uma visão contemporânea, com os saberes que tenho hoje, com a visão de mundo que tenho hoje e com as referências adquiridas com o tempo. O público não quer isto. Ele quer se lembrar de Brasil 3 x 1 Argentina porque lá, em 1982, ele estava na casa da avó, já falecida, comendo um bolinho de chuva com café, enquanto o jogo passava na televisão. Depois, ele lembra que saiu para brincar com os vizinhos, jogando bola no meio da rua, empolgado com a vitória brasileira. Ele era o Zico e no dois contra dois, o seu amiguinho era o Falcão. Do outro lado, o Sócrates e o Éder. A nostalgia nos empurra para a coisa mais confortante e singela que temos: o afeto que reside na memória.
Cria-se, portanto, a indústria da nostalgia. Como o presente do jeito que a gente conheceu não existe mais, só nos cabe relembrar o passado a pedido dos nossos anseios. A nossa busca não é por reviver aquilo que foi vivido. É por lembrar de cada momento, cada sensação, o cheiro, a voz, a textura, a cor do dia. É aquilo que nós lembramos e não o que a história nos contou. É a nossa experiência sólida, algo que, mesmo abstrato, aparenta uma concretude tão grande que parece que a gente pode se abraçar nela e ficar por um tempo, pensando e entendendo o sentido de felicidade.
Se o presente não nos serve e o futuro é incerto, apenas o passado é sólido. E é nele que essa indústria da nostalgia ancora sua embarcação e despeja memórias boas para quem um dia foi feliz e sabia. Talvez o futuro nos apresente uma memória para o presente. Porque essa roda não para de girar. É a roda do tempo, implacável, irremediável, infalível. Uma roda que nos traz a mais grata recordação e nos remete ao mais puro dos sentimentos.
A indústria cultural da comunicação entendeu isso direitinho. Seja no YouTube, nas playlists do Spotify ou na televisão, a busca pelo passado é uma das características mais marcantes do “espírito do tempo” (Zeitgeist) em tempos de pandemia. Se a gente não pode sair de casa e experimentar o sentimento do tempo presente, que o espírito do presente seja o passado. Porque ele é aquilo que o presente não tem: vida, lembrança e certeza.
A nostalgia é, também, um sentimento pessoal. A Copa de 82, por exemplo, embora tenha adquirido pelo senso comum uma aura de magia pelo imaginário coletivo, conforme mencionei antes, desperta, em sujeitos diferentes, memórias diferentes. A noção de tempo se torna espetacular:
O mundo já possui o sonho de um tempo. Para vivê-lo de fato, deve agora possuir consciência dele. (DEBORD, 2017, p.134 [5])
A crise do tempo transforma a nostalgia em mais um produto da sociedade do espetáculo, em que o sujeito — eu — , através de suas memórias, situa-se frente ao descortinar do palco e, isolado — literalmente — produz minifantasias espetaculares em busca de um conforto que somente a memória lhe atribui. É o eu vivido. Pelo passado, mas vivido. Na sociedade do eu, o passado é o filme que a gente roda para dar sentido à nossa existência. O eu nunca foi tão espetacular como hoje em dia.
A cultura das lives e o BBB: o “eu” como atração principal
Em tempos de pandemia, o remédio é caseiro. Sem shows, sem aglomerações e direto do conforto do lar, artistas brasileiros, geralmente em parceria com algum patrocinador, recorrem às lives como forma de aliviar os fãs que não podem assistir às suas apresentações. O negócio vem dando resultado. A live da cantora sertaneja Marília Mendonça bateu 3,2 milhões de visualizações, o que representa um percentual alto da população brasileira que se conectou numa quarta-feira à noite para assistir à artista realizar um playback maroto de base pré-gravada, apenas cantando em cima do que é tocado. Um karaokê com grife. Já a experiente dupla Bruno e Marrone conquistou os fãs com aquilo que o brasileiro mais gosta: intimidade, trago liberado, petiscão de churrasco e mamação com cantoria. Bruno, visivelmente alterado, transformou-se ali em “gente como a gente”, embora “gente como a gente” não tenha aquela casa. Mas “gente como a gente” bebe pra caramba e, vocês sabem, como estamos bebendo nesse período de isolamento social.
O recurso utilizado pela indústria musical brasileira é válido. Além disso, toda a monetização do evento é revertida para ajudar o pessoal que mais sofre com o isolamento e com a doença. Mas por que é um sucesso? Há vários fatores que incidem sobre a bem aventurada experiência de fazer uma live direto de casa para milhões de pessoas. Artistas como Marília, Bruno e Marrone, Gusttavo Lima, Jorge e Mateus e Péricles, que fizeram lives, têm um amplo apelo popular. Ponto para quem teve a sacada. Mas não é só isso. Poderiam, por exemplo, selecionar reprises de grandes shows deles e disponibilizar nas redes sociais. Não teria o sucesso da live. Possivelmente, mesmo que fizessem isso ao vivo, não teriam esse êxito. Voltamos a Marshall McLuhan, que sempre nos explica tudo sobre comunicação — e, talvez por alguma influência que não sei de onde veio, nunca consegui achar um pensador melhor que ele para explicar estes fenômenos:
O que importa no mito de Narciso é que os homens logo se tornam fascinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles próprios. […] Fisiologicamente, sobram razões para que uma extensão de nós mesmos nos mergulhe num estado de entorpecimento. (McLUHAN, 1964, p.59–60 [6]).
O sucesso das lives está menos no alcance que os artistas têm junto ao público do que no fato das transmissões serem realizadas no lar, doce lar. Ali, comportando-se como “gente como a gente”, a audiência enxerga seu ídolo sem o revestimento e o engessamento que um show megaproduzido tem. Com o despojamento e a informalidade que nossa casa tem, desnudados de uma condição de superstar, desvinculados da fria relação entre palco iluminado e plateia escura. Na live, foi possível sentir o trago do Bruno, a miopia da Marília, a varanda do Gusttavo Lima e o desprendimento da galera do pagode. Os artistas funcionaram como uma extensão da audiência em estado bruto. Em tempos de pandemia, todos estão isolados, todos estão em casa e todos se acariciam de imperfeições que a luz do palco esconde. Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam mais.
Castells define o que é audiência criativa:
Uma audiência ativa que molda seu significado ao contrastar suas experiências com os fluxos unilaterais de informação que ela recebe, representando o surgimento da produção interativa de significado e se constituindo na “fonte de cultura da remixagem que caracteriza o mundo de autocomunicação de massa” (CASTELLS, 2015, p. 186 [7])
Não basta ver, tem que participar. As lives transcendem o hábito apenas de assistir. Elas podem ser feitas por qualquer um. Ao entrar no Instagram, deparamo-nos com diversas lives que estão acontecendo. Do político ao influencer. Da celebridade ao anônimo. Eu fiz live! Você, provavelmente, também. Ali, o sentimento narcisista se desenvolve ao ponto de você criar um conteúdo que, embora não atinja milhões, vai alcançar a sua microrrede, sua bolha pessoal, seu grupo de seguidores: No futuro, todos terão seus 15 minutos de fama (WARHOL, anos 1960 [8]).
Outro fenômeno que aparece com força é o ressurgimento pungente do Big Brother Brasil, outrora famigerado reality show da Rede Globo de Televisão, mas que em 2020 ganhou um espectro de pequeno recorte sociológico sobre as relações humanas. A gente debate o BBB20 porque o debate atual das redes sociais é muito mais sobre pauta e narrativa do que sobre cotidiano. Veja bem, o BBB não expressa o cotidiano, que consiste na rua, nos boletos, na violência da noite, no movimento do tráfego, nas brigas familiares ou no apressado almoço diário. Ele expressa a narrativa da pauta: ali estão presentes as mazelas sociais que servem como pano de fundo para os debates que a gente vem travando, especialmente via ZAP. É a era da falação narrativa — que, embora pareça um pleonasmo, é um termo cunhado para designar que hoje as coisas envolvem muito mais o debate sobre pauta do que o debate sobre as coisas.
No BBB20, estão presentes debates sobre racismo, machismo, privilégios, abuso, preconceito e alienação. Em época de confinamento, o programa supera qualquer audiência prevista para um modelo que parecia esgotado. McLuhan nos serve novamente: é a extensão da falação narrativa. Ou, ao menos, um exemplo, uma ilustração, quase um corpus. Se não há futebol, não há carnaval ou não há o vizinho pegando a vizinha, o BBB tem tudo e mais um pouco. Parece ter um pouco de nós, uma identificação que não parece tão objetiva desta forma, mas que se banha em subjetividades para um deslocamento do nosso cotidiano e a transformação nisso em coisas que parecem importar mais. Não é mais o sentido da alienação que norteia o gosto pelo BBB. Nem do entretenimento. É um sentido, stricto sensu, sociológico. É uma sensação de participar da pauta, de argumentar a narrativa, de se fazer importante debatendo um programa — que, em sua origem, tem como força motriz o entretenimento — como se fosse o fragmento mais perceptível do comportamento humano. Ele é isto, mas também não é. O comportamento humano não está à luz do jogo, está à luz do cotidiano. A questão é que é bom para os tempos atuais evocar as narrativas mais que o cotidiano. Não tem graça eu xingar a NET pela velocidade precária da Internet em casa. Mas tem toda graça do mundo eu votar #ForaGizelly, contribuindo com minha parte para nosso belo quadro social. Ah, tolos dourados!
O fim do debate: o lacre como definidor da razão
O narcisismo das redes sociais é amplificado pelo tédio. O isolamento social se transforma em martírio, mas também numa espécie de absorção da segurança cotidiana. A gente se expõe menos na rua e mais nas redes sociais. A gente conversa menos e escreve mais. A gente ouve menos e lê menos ainda.
A transformação da audiência em produtora de conteúdo despertou uma certa animosidade em hábitos que as pessoas tinham, como por exemplo, o de aprender. Com o acesso às redes disseminado, já li relatos de que as pessoas estão lendo menos. Consequentemente, aprendendo menos. A leitura é hiperlinkada, fragmentada, curta e grossa. Uma contradição, uma vez que temos tempo de sobra. Em casa, eliminamos os desgastantes deslocamentos de um lugar para o outro, o tempo excessivo perdido no trânsito, a necessidade de ficar horas a mais no espelho se arrumando para uma reunião e todos os protocolos sociais que a vida nos exige. Temos todo tempo do mundo. Poderíamos ler aqueles textos enormes, os livros pendentes, silenciar numa meditação letrada que nos oferece conhecimento. Mas tem aquela maldição da rede social e eu preciso que os outros me vejam. Me leiam. Me tenham.
A dinâmica comportamental que, por exemplo, o Twitter adquiriu entre os brasileiros, especialmente de 2013 para cá, caminha muito mais para a formação de uma batalha simbólica que de uma troca de ideias. A troca de ideias está em extinção. Os debates produtivos foram trocados por uma espécie de duelo em que um não quer aprender com o ponto de vista do outro. Evidentemente, a polarização ideológica que assola o país ajudou. Mas não para por aí. É para tudo: do futebol ao restaurante preferido, as conversas no Twitter se transformaram na guerra definidora de quem tem a razão. Quem tem a razão, vende o jogo. É um jogo de narrativas. A narrativa superou o fato há muito tempo.
Só que narrativa não é factível. Ela é assumida como caráter instrumental de defesa ideológica. E permite o absurdo. Por exemplo, ninguém, em sã consciência, salvo quem é especialista, teria qualquer condição de debater a hidroxicloroquina como algo favorável ou desfavorável no combate ao COVID-19. Isso não é assunto que se tenha posição. Menos para o tuiteiro que tudo sabe. O mal da sociedade moderna é que o debate terminou. Existe uma certeza de absolutamente tudo sobre absolutamente todos os assuntos existentes. E eu sei. Como eu sei? Não sei, só sei que eu sei.
A transformação do fato em narrativa também gera o ultimato da sabedoria e da certeza, que é o lacre. Ninguém mais está disposto a mudar, a aprender ou a sequer ouvir. Dentro das nossas certezas absolutas — que vão da “cura do coronavírus” (sic) ao intrincado relacionamento pessoal no BBB20 -, estamos dispostos a:
a) dizer o que é certo ou errado; b) dizer ao outro que ele está errado; c) provar que o outro, que é errado, é menos que você, o certo; d) alimentar a ideia do “eu perfeito” e e) não basta eu ser perfeito, preciso apontar que o outro é imperfeito.
O lacre é acompanhado por “We Are the Champions”, com aquela imagem do Rocky Balboa subindo as escadas na Philadelphia para depois sacar um óculos THUG LIFE, colocar no rosto e dizer: EU SOU FODA. Se a história só conta a história dos vencedores, formulamos uma espécie de campeonato mundial dos seres humanos, onde só tem um vencedor: você.
A sociedade moderna é explicada pela cultura do lacre. A gente morre de medo de ser alguém inferior a outro alguém. A gente morre de medo de ver que, ao nosso lado, estão pessoas melhores que nós. Para ser pior, basta ser diferente. O mundo perfeito é um mundo repleto de “eus”. Não tem espelho que aguente.
Remoendo o Zeitgeist: a sociedade medíocre de espelhos quebrados
Uma das premissas mais avassaladoras do Zeitgeist contemporâneo é a de que “menos é mais”. O espírito do nosso tempo é apressado, inquieto, desafia o ritmo de um tempo e, paradoxalmente, é no tempo que buscamos as soluções para nossas ansiedades: na nostalgia, na solidez e na concretude. É como se houvesse uma dupla personalidade eterna: aquilo que somos e aquilo que queremos que os outros achem que somos. O que somos, e agora está bem nítido nesse momento crítico do mundo, é um conjunto de memórias, crenças, valores e pessoas. Somos a nostalgia que nos remete a uma época em que não tínhamos esse pânico do fracasso. Somos nossas histórias, que, somadas aos nossos valores, formam nossa personalidade. O que queremos que os outros achem que somos se sustenta através das narrativas: precisamos de engajamento, de pauta, de batalha simbólica, de provar diariamente que eu presto e fazer o outro acreditar que eu sou o máximo, porque é assim que me defino. Sem chance para o oponente. É mais ou menos como os moinhos de vento de Dom Quixote: há dragões onde não há.
Forma-se mais um paradoxo para o espírito do tempo. Da mesma forma que manifestamos uma autoconfiança exagerada naquilo que pregamos, há uma fragilidade incrível nas narrativas. Porque elas são frágeis. O que não é factível, sólido e com base, é frágil. Apresentamos uma visão de mundo sedimentada no nada, no espaço, na poeira. No vácuo. Tudo isso reforça a ideia do “eu máximo”, que é, por fim, a grande marca do nosso tempo. Construímos uma fábula de heroísmo e nos concedemos o privilégio de usar a capa. Desenvolvemos aos meus “outros eus” — aqueles que pensam como eu — o título de representantes sociais em busca de uma luta que é baseada em pura mitologia. O mito do “eu perfeito”.
É o mito de Narciso se manifestando em doses cavalares. É o pensamento das nossas extensões se materializando em forma de live — meus 15 minutos de fama — , de BBB — a minha dose diária de sociologia- e de narrativa e lacre — meu momento and the Oscar goes to… Tudo baseado no “eu”. Esse pensamento rastaquera sobre o que são os fatos sociais e o desconhecimento que a luta é social e não individual reforçam o nosso já citado Zeitgeist: o espírito do nosso tempo é refletido na nossa própria imagem, seja através do conforto de uma memória afetiva ou naquilo que nos tornamos em público. No caso, no sedutor ecossistema das redes sociais. Quando tem muito espelho, Narciso não acha mais nada feio. Mesmo que eles estejam quebrados, projetando o espírito de um tempo medíocre, em que, como um cãozinho assustado, a gente se contenta com um osso de plástico. Ao som de “We Are the Champions”.
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Referências do texto:
[1] Zeitgeist é um termo em alemão e significa, a grosso modo — distante aqui de qualquer pretensão analítica e de qualquer corrente filosófica que orienta o termo para diferentes interpretações — , espírito do tempo. Cada tempo tem suas características, sua velocidade e seu modus operandi.
[2] HEGEL, G.W.F. Introdução à História da FIlosofia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1986.
[3] HEIDEGGER, M. A questão da técnica. In.: Scientia e Studio. São Paulo, v. 5. n. 3, 2007, p. 375–398.
[4] BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[5] DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017.
[6] McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem (understanding media). São Paulo: Cultrix, 1964.
[7] CASTELLS, M. O poder da comunicação. São Paulo: Paz e Terra, 2015
[8] Não se sabe precisamente quando a frase foi cunhada por Warhol. Alguns registros apontam para uma entrevista dada pelo artista em 1967; outras referências registram que a citação é de 1968. De qualquer forma, não se trata de uma citação acadêmica.