Boteco, folclore e preconceito: um mapa do jornalismo esportivo brasileiro
O apelo pela audiência, o baixo nível na análise, o boteco “no ar” e um panorama do público consumidor: uma proposta de ensaio sobre a imprensa esportiva no Brasil em 2019
Certa vez, uma pessoa que considero muito me disse que, ao entrar no mestrado e posteriormente no doutorado, na medida em que eu me tornasse um pesquisador efetivo, eu passaria a ser menos jornalista. Pensei que era pela falta de tempo. Pensei que seria por uma questão de interesse. Na verdade, as lentes que a gente adquire quando se torna um pesquisador são incorporadas de forma definitiva. Antes de mais nada, não me vejo como um pesquisador de fato. Eu não atuo de maneira efetiva no mundo acadêmico. Eu ainda me vejo como um jornalista — até me soa melhor se chamado assim. Todavia, o processo é irreversível. Essa tensão existente entre o jornalista e o — vá lá — pesquisador — ou estudante de pós-graduação, talvez seja mais digno — indica caminhos que me distanciam do jornalismo praticado atualmente e me aproximam dos interesses que eu ganho nesta área. A gente passa a enxergar melhor os fenômenos. Como eu estudo jornalismo esportivo e demonstro interesse particular em coisas como a hermenêutica e a fenomenologia, como empolgado aprendiz destas duas áreas percebo que este caminho sem volta me desperta um fascínio tão grande quanto a minha frustração em observar como vem sendo produzido esse jornalismo.
Este distanciamento não é só pela aproximação com a academia. Cada vez mais, percebo que aquilo que se produz se distancia daquilo que penso ser o melhor para o jornalismo esportivo. Isso, obviamente, afeta meu desempenho. Minha impaciência é transparente para quem me acompanha pelo rádio ou nas redes sociais. Enxergar o fenômeno me faz despertar para, num grito inútil de desesperança e cansaço, escrever este ensaio a respeito do que observo. Por que o jornalismo esportivo brasileiro é tão diferente daquilo que julgo ser um jornalismo ético, qualificado, analítico, preciso? Acho que está na hora do divã, mais uma vez.
Um jornalismo de boteco
Tenho me interessado cada vez mais pelo comportamento da audiência, que é algo que os jornalistas sabem pouco. Em geral, eles projetam ao ouvinte aquilo que eles imaginam ser um produto que gera audiência. Só que as lentes dos jornalistas possuem um foco voltado para o fazer jornalístico. Observar o que o público quer exige um trabalho muito maior do que uma pesquisa do Ibope ou enquetes de Twitter, como eu fiz recentemente. É preciso, sobretudo, entender um evento que compõe o novo papel da recepção na era contemporânea.
Estou produzindo um artigo científico — que é voltado para o mundo acadêmico, com seu rigor de escrita e método — levantando a hipótese, bem mcluhaniana, de que o atual comportamento do ouvinte indica um sentido de pertencimento acima de tudo. Isto é, ele consome aquilo onde ele se enxerga. Também é um comportamento individualizado, personalizado e que produz um imaginário diferente. Ele precisa sentir que aquilo que é dito ou escrito lhe pertence, lhe representa, lhe faz parte. É uma conexão sensorial. O pertencimento pode ser negativo ou positivo. Consome-se o que o sentido absorve: pelo bem, quando o que é dito/escrito vai ao encontro do receptor; e pelo mal, quando o que é dito/escrito contraria o receptor.
Pertencer é idealizar fazer parte de um grupo. Num debate esportivo, por exemplo, o torcedor acompanha o que é relevante para a sua conversa. Umberto Eco (1932–2016), um dos maiores pensadores de comunicação da história, escreveu um brilhante texto chamado “A falação esportiva”. No artigo, ele argumenta que o futebol é pano de fundo para a conversa. De fato, se formos considerar o futebol somente como esporte ou ciência — algo que corriqueiramente escrevo aqui — , vai-se o encanto, o apelo, o deslumbre. O mágico no futebol é que ele desperta, entre outras coisas, assunto. Ele é, por exemplo, um elo de aproximação entre desconhecidos. Ele gera uma “falação”, uma conversação, um encontro.
Muitos artigos foram escritos sobre a sociologia do bar. Convoco outro sociólogo importantíssimo, o canadense Erving Goffmann (1922–1982), que em seu livro “Comportamento em lugares públicos” (1963) aborda que os assuntos discutidos em um ambiente como o boteco precisam adquirir uma significação possível em direção à inclusão das pessoas que estão no local. Nada mais inclusivo que o futebol. Cabe salientar que o boteco é uma alegoria ilustrativa — é uma forte representação, mas ainda assim ilustrativa. O boteco pode ser o grupo de Whatsapp, a timeline do Twitter, o ambiente de trabalho, o churrasco de família. O palco que reúne pessoas é um ambiente perfeito para propagar essa falação. É um ambiente de pertencimento, portanto. Ninguém fica de fora. Todos têm a contribuir.
Uma mesa-redonda na televisão deve ter a mesma abordagem da falação do boteco? Ultimamente, é perceptível o aumento de programas que buscam explorar o que chamo aqui de sensacionalismo esportivo. Da mesma forma, perfis de Twitter produzem manchetes ilegíveis, apelações, comparações absurdas e exploração de sensações que fogem do que deveria ser jornalismo. Em geral, essas manifestações são bem-sucedidas. Há um grande número de compartilhamentos, likes e engajamento nestas postagens e uma boa audiência nestes programas. A fórmula é antiga, mas, em tempos de crise, o certo toma o lugar do duvidoso: as empresas precisam de audiência, os influenciadores precisam de engajamento, os canais de YouTube precisam de acesso e, vamos lá, todos nós precisamos pagar nossas contas. O jornalismo foi ao boteco para achar um novo modus operandi de sobrevivência aos tempos digitais: se por um lado, podcasts são um sucesso porque qualquer um pode fazer, o jornalismo se joga nos braços do povo, ou melhor, do boteco. Ao ponto de jornalistas parecerem o tiozão da saideira. Não há mais balcão. Todos do mesmo lado, com a mesma falação.
A audiência desqualificada
Antigamente, quando havia separação entre o boteco e o microfone, as pessoas procuravam a imprensa para se informar e validar — ou não — a opinião nos debates. Claramente, o formato de mesa-redonda contribuiu para este, digamos, exercício de empatia entre jornalista e público. É uma nítida aproximação entre quem comunica e quem recebe. Só que sempre houve limites. Por mais que existissem torcedores nos debates, havia um contraponto jornalístico, que, de certa forma, servia como um fio condutor dos programas. Este contraponto cedeu lugar a mais torcedorismo, mal disfarçado de “jornalismo que o povo quer”. Os programas de debate têm sido uma versão de programa de auditório e circo que divertem e geram mais falação. Mal e porcamente comparando, eles se afastam do jornalismo para buscar — com inspiração no divino boteco — aquilo que o povo gosta, aquilo que o povo quer: polêmica para comentar depois.
Voltamos à audiência. No pensamento médio de quem consome, percebo um desejo em querer um jornalismo de qualidade. Rapidamente, observei alguns perfis de torcedores ativos no Twitter:
- Preferência por ouvir a rádio do seu time porque lá eles falam aquilo que o torcedor quer ouvir;
- Compartilhamentos de postagens que geram polêmica ou divergência e desprezo a análises mais qualificadas;
- Elogios a influencers, que, ao invés de exercer um papel jornalístico, exercem um papel de torcedor (ele é como nós);
- Unfollow em quem não pensa como eles;
- Produção de mais fóruns de debate no sentido de nunca esgotar o que se consome, ou seja, mais falação, mais papo de boteco
Há, nisto, uma ressignificação da mensagem: o torcedor transforma o que é dito em pretexto para mais papo de boteco. A audiência quer isto. Ela quer esse tipo de jornalismo (sic), porque, inconscientemente — ou não — ela se sente pertencida, acolhida, abrigada por ele. A fórmula do boteco deu certo porque a audiência procura esta fórmula.
No ano de 2013, meu amigo Rodrigo Oliveira, excelente repórter da Rádio Gaúcha, publicou duas matérias no site da emissora: uma entrevista exclusiva com, então secretário-geral da FIFA, Jerôme Valcke, falando sobre a Copa de 2014 e suas preocupações sociais, estruturais e econômicas com a realização do Mundial no Brasil. Algo extremamente pertinente, relevante, feito com apuro, cuidado, boa imagem, legenda, captação perfeita do áudio. Foram, aproximadamente, segundo o próprio Rodrigo, 300 visualizações. No mesmo ano, um gremista de caiaque no Guaíba pegou uma bola durante o treino do Internacional no CT Parque Gigante. Imagem ruim, áudio inexistente e 30 mil visualizações. Repito: um gremista num caiaque pegando a bola num treino do Inter teve CEM VEZES mais visualização do que uma exclusiva com o segundo executivo mais importante do futebol mundial. O gremista, ali, era a flauta, a corneta, essas instituições universais que movimentam o torcedor. A audiência desprezou o jornalismo para se abraçar em algo que poderia produzir corneta. Trocou a relevância por uma bobagem.
Qualquer postagem de uma pessoa tirando onda com o rival terá mais alcance do que uma matéria bem produzida. O crescimento dos influencers se dá por isso também. Eles são representantes não-oficiais — ou oficiais — do mais sincero desejo do público em ter sua voz lá, na imprensa. O jornalismo não se presta a isso. Por isso, a imprensa é vista como inimiga. Ela não representa ninguém, nenhum torcedor, nenhum desejo alheio. Ela é, em tese, evidentemente, uma representação paralela ao que o torcedor pensa.
Com todos os problemas que a imprensa tem — e são muitos — , é preciso apontar também o dedo para um público cada vez mais estimulado a consumir aquilo que gera pertencimento e projeção dos seus anseios. Jornalista bom é aquele que fala o que eu quero ouvir. Não é aquele que vai apurar, revelar, noticiar ou mesmo opinar. Ele é uma projeção do meu eu. Um instrumento para a minha voz. É por isso que o boteco venceu: porque lá dentro, sem filtro, sem amarras, sem organizações, sem estúpidas regras de redação, o papo é livre. Com flauta, com corneta, alimentando essa falação ininterrupta, estimulando esse comportamento, desnudando as personas e ficando uma verdade que o torcedor acha que a imprensa tem que ter. Mas a imprensa não é o torcedor. Em tese.
Jornalismo de preconceito
A busca por audiência encontra um público disposto a pertencer e a querer fazer parte. O jornalismo de boteco é o caminho mais curto para estabelecer um elo entre o que é falado e o que é ouvido. O caminho encontrado é a imprensa se passar por audiência. O fazer jornalístico não é uma operação que gera empatia. Ela tem dogmas, predisposições, objetivos, regras que o torcedor não quer e nem precisa querer receber. O problema é que, ao buscar essa audiência a qualquer custo, o jornalista se torna um torcedor com a mesma ausência de filtros que se tem no boteco.
O caso do pão com ovo do jornalista Felippe Facincani, dos canais Fox Sports, é um perfeito exemplo disso. Ele pediu desculpas depois (saiba aqui o caso). No momento em que ele disse que “nem para sua cachorra” daria a comida que um telespectador mandou, era a materialização do cara no boteco, sem filtros, pensando o que ele quer, do jeito que ele quer. Se por um lado, esse tipo de procedimento dos jornalistas gera uma inegável empatia com o público, por outro lado percorre um caminho antiético no qual o jornalismo esportivo brasileiro atual desfila livremente. Ali, houve a manifestação de um preconceito, não de uma brincadeira.
Essa “aproximação com o povo” produz aberrações e eventos racistas, homofóbicos, misóginos e outras coisas que você pode classificar aqui. O ambiente dos programas e do Twitter está tão “botequeiro”, tão à vontade, tão livre, que ali os jornalistas — que carregam consigo uma série de responsabilidades, prestadas inclusive em forma de juramento na formatura, que todos se esquecem e que ninguém cumpre — são gente como a gente. O ambiente brasileiro está polarizado, carregado de ódio, intolerância, insatisfação. Quando um jornalista produz um preconceito, ele o faz porque esse novo ambiente assim o transformou. A liberdade das coisas ultrapassa o limite e chega até a mais profunda ausência de filtro: ele o faz porque assim o é.
Acredito que o público queira saber cada vez mais as verdades dos jornalistas. Mas a profissão impõe limites. Livrar-se totalmente destas imposições significa fugir da profissão. O boteco, um ambiente autônomo, permite liberdades que o jornalista não tem. Mesmo assim, o boteco tem seus limites, onde qualquer tipo de preconceito ou crime — como o racismo — deve ser condenado, refutado, combatido. Quando se tiram amarras num local de poder — no momento de um programa, há uma manifestação de poder de um comunicador sobre a audiência — , dá-se uma liberdade íntima para apresentar aquilo que há de pior no ser humano. Colocar-se no lugar do outro é, em muitos casos, colocar-se no lugar dos piores seres que, evidentemente, também ouvem rádio e frequentam redes sociais. O “não foi bem assim” também é usado no boteco. A diferença é que estes fizeram tudo sem tomar um gole qualquer.
“Vocês consomem o jornalismo que vocês querem, tem público para tudo”: a ingenuidade de um pensamento umbiguista
Volta e meia, algum bom jornalista — sem ironias, é sério — argumenta que o público tem discernimento e capacidade para decidir o que é consumido. Existe algo na indústria cultural em que aquilo que é hegemônico se sobrepõe e interfere no que é particular. O todo subjuga a fração. A moda funciona dessa maneira. A indústria musical da mesma forma. Para toda manifestação artística, cultural ou laboral, existe um fazer dominante, que dita todos os pequenos procedimentos que compõem as particularidades.
É óbvio que existem targets, públicos-alvo, sentimentos de personalização que determinam o que cada um consome. No entanto, segmentar a esse ponto, fingir não acontecer as arbitrariedades e levar a coisa para um lado bom me parece o Morgan Freeman querendo combater o racismo. O jornalismo de boteco não vai deixar de existir se a gente não falar sobre ele. Ele não deixa de acontecer se a gente decidir não compartilhar. Não basta não consumir, é preciso combater. Penso que é preciso que os bons jornalistas entendam que este modelo está se tornando perigosamente hegemônico e que, caso isto de fato aconteça, haverá um entrave gigantesco para que outros formatos consigam seu espaço efetivo.
A explicação é meramente comercial. É, de fato, bonito entender as novas ferramentas digitais como facilitadoras de geração de conteúdo específico, personalizado e qualificado. Mas o mercado se move em ondas como o mar. Com os influencers, torcedores, botequeiros e antiéticos ganhando espaço e conseguindo esse elo com o torcedor por meio de uma empatia às avessas, essa atividade se transforma em audiência. Audiência dá lucro. Lucro para as pessoas física e jurídica. Teríamos, então, um grande mercado do jornalismo de boteco — se é que já não temos. As outras formas de análise ou mesmo, pegando no âmago da questão, o jornalismo esportivo propriamente dito, perderiam espaço. Ficariam restritos a nichos cuja sustentabilidade seria imprevista diante do que se tem como maior.
Uma tentativa de moralização e oposição a esse modelo surgiu a partir dos analistas táticos. Formou-se em torno deles uma pequena bolha, que já deu uma murchada por conta dos problemas de público — ao se trabalhar com um nicho tão específico, não há negócio que prospere — e dos próprios analistas — que incrivelmente insistem em não abrir o leque para encontrar um meio termo entre o que é específico e o que deve ser compreendido. Esse modelo seria uma oposição legítima se fosse feito por pessoas que não tratam o futebol como “algo trabalhoso de se entender” a cada cinco minutos. Também ajudaria não ser tão professoral e megalômano. Como minhas críticas a essa turma soaram como uma espécie de cruzada moral contra a ciência (sic), a ingenuidade e a inofensividade dessa galera parece fazer crescer o jornalismo de boteco. Para cada um que consome um “clean sheet”, tem 5000 que consomem um “fulano tá torto na noite”. Cavalheiros, a empreitada de vocês é digna, mas devo dizer que uma hora vocês vão sentir o peso dos boletos ou perceber que o poder de consumo e influência do público de vocês não faz rancho no Zaffari.
O futuro do jornalismo esportivo: um resgate às origens
Creio que o combate ao jornalismo de boteco deva ser pensado por quem faz jornalismo sério de uma forma mais abrangente e menos firulenta. Nada mais é que resgatar os valores clássicos do jornalismo com uma modernização utilizando os meios de comunicação como instrumentos dessa propagação de valores. Não é uma luta por target, é uma luta por hegemonia. Desta vez, é hora de esquecer o que é público-alvo e focar no cerne da questão: o jornalismo perdeu para o boteco, para o folclore e para o preconceito. Eles estão dando as caras, aparecendo, falando do cabelo dos outros, da comida dos outros, da cara dos outros. Um boteco amplificado, reverberado, que ecoa numa sociedade condescendente, complacente, cúmplice. Que encontra voz em mais preconceito, em mais boteco e em mais folclore.
Não é dizendo que “dá trabalho entender o jogo” que se fará uma oposição a este modelo. Não é fingindo que ele não acontece. Não é “não dando palanque pra otário”. Porque o público não acha esse cara um otário. Nós achamos. Mas a gente precisa do público para viver. Caso contrário, faremos como esses clubes de análise tática com 18 pessoas num grupo de Whats ou como esses debates chatíssimos da televisão em que um pretende saber mais que o outro. Eu falo de jornalismo, de troca de ideias, de reflexão sobre os acontecimentos, de tentar repassar ao público algo que seja proveitoso, algo além da flauta, da corneta, da falação esportiva do Umberto Eco.
Meu discurso parece ser romântico, mas é um misto de indignação, reflexão, preocupação e, por fim, desesperança. Eu não pretendo encontrar eco (parafraseando o que escrevi) nisto que escrevo por parte dos jornalistas. Poucos conseguirão chegar até aqui no texto. Quem conseguir, possivelmente não consiga fazer nada. Você pode entender como um desabafo, mas é só a tal observação de um fenômeno que eu expliquei lá atrás. Aquelas tais lentes que eu ganhei e que não consigo mais tirar. Também não sou um “cavaleiro da esperança do bom jornalismo”. Até porque, como coloquei antes, quanto mais pesquisador eu me transformo, torno-me menos jornalista. Mas ainda assim, acredito em coisas boas. O jornalista Julio Oliveira, do Sportv, falando sobre racismo, disse que o formador de opinião precisa ser, antes de mais nada, um agente de transformação. De forma utópica, como uma vez um seguidor me disse, lutando contra moinhos de vento, como Dom Quixote, aqui estou, peixe fora d’água, borboleta no aquário, tentando me encaixar num jornalismo que não me pertence mais. Não posso fazer nada se eu vi dragões.