A contradição, o caos e o conflito

Carlos Guimarães
8 min readOct 19, 2018

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Uma das pessoas mais fantásticas que eu conheci nos últimos tempos foi minha terapeuta, a Nira. Eu sempre achei que não precisava de terapia porque era bem resolvido. Não há problemas quando o olhar é sobre si. O espelho não diz de verdade quem a gente é. Quando a pessoa fala sobre os seus defeitos, esbarra nos fatídicos chavões de “sincero demais”, “teimoso demais” ou “exigente demais”. Com o tempo, aprendemos que a sinceridade é seletiva, a teimosia é autodefesa e a exigência é busca por um ideal que nunca chegará. A Nira apontou, disparou e acertou no alvo. Pé na porta, porque não sou um sujeito tão fácil assim. Sou absolutamente confuso. Aí, ela desvendou os três C’s que permeiam essa mente estranha: eu busco, a todo custo, a contradição, o caos e o conflito.

Já contei essa história. Chego no consultório e Nira diz que a contradição é evidente em mim: a barba é branca, a roupa é de adolescente (tênis Adidas detronado, calça jeans rasgada, moletom com capuz preto). Os hábitos revezavam entre a chatice de um velho de 80 anos e a inquietude de um adolescente de 17. Alguém que adora e detesta as mesmas coisas e aquilo que eu não amo, eu não odeio, mas desprezo. Essa é a minha contradição e é apenas o primeiro passo para entender os outros dois C’s.

O segundo deles é o caos e minha predileção por ambientes aparentemente desorganizados. É como se fosse impossível catalogar minha vida em hábitos de certa forma uniformes. Se eu tenho um trabalho, arranjo um estudo. Se eu tenho um estudo, arranjo dois. Ou uma prova. Ou um livro. Ou faço academia. Ou aprendo a cozinhar. Tudo ao mesmo tempo, entrelaçando meu cotidiano com uma falta de tempo que eu faço questão sempre em ter. Uma vez eu tentei meditar e fiquei mais nervoso que antes. O ar puro não relaxa, só faz eu ter inspiração para juntar mais ideias tarefas e buscas por sentido. O caos é preciso para uma obsessiva necessidade de nunca estar numa zona de conforto. Confortar-se, conformar-se, resignar-se é perder vida e eu amo viver. Meu caos é uma organização pessoal que me permite seguir em frente, como um oxigênio para a mesmice. Estar em movimento, mas não um movimento categorizado, catalogado, classificado. É um movimento desordenado, configurado entre o instinto de querer ser e a emoção de precisar estar. Não há sentido racional aparente, embora ele seja um caos planejado.

Para que o caos aconteça, alguma ordem natural das coisas precisa se alterar. Aí entra o terceiro C, que é o conflito. Ao longo de toda minha vida, não lembro de um estado de paz absoluta, de uma situação de inteiro contentamento e de uma força de espírito que me colocasse em plenitude sobre todas as coisas. Sempre falta algo. Para que isso seja buscado, o primeiro caminho que eu busco é o conflito. Nira diz que eu não me basto sozinho, que eu preciso trazer para o meu ambiente de contradição e de caos a prática do conflito. Quando o conflito é interno, uma maneira de alimentar esse monstrinho é exteriorizá-lo, expô-lo, manifestá-lo. Funciona como uma espécie de dicotomia entre aquilo que eu penso e aquilo que eu posso, veja mais uma contradição formada. Em suma, eu preciso brigar, dizer, esfregar, naturalizar o conflito, materializar um embate. Meu ambiente de segurança é baseado quase que inteiramente em conflito. Eu vivo para achar problemas e propor soluções. Não há estado de paz, ao menos não do jeito convencional. Minha paz é abastecida pelo conflito.

Reli meus textos aqui no Medium, no Facebook e em outros locais. Lembro de um blog que eu tinha. Chamava-se Anger is a gift e era um orgulho. Penso em bandas que eu gosto e em porque o punk sempre me chamou mais atenção que o classic rock. Porque, ambientado em contradição, caos e conflito, eu me sinto mais confortável no anti, no contra, numa subversão eterna de quem não pretende resolver as coisas em cima da cama, fugindo ou abstraindo. Nada entra por um ouvido e sai pelo outro. Sai pela boca ou pelos dedos, em forma de texto. A rigor, o que eu escrevi ao longo desse tempo todo, foram textos críticos, pancadas, visões pessimistas e carrancudas a respeito de temas que me incomodavam. Lembrei que também tive um blog chamado Metralhadora Verbal. Aí, percebi que tudo isso é uma espécie de terapia criativa: eu escrevo como forma de sobrevivência mental, admitindo minhas contradições, surfando no caos e buscando o conflito.

Minha postura com relação ao esquizofrênico momento brasileiro tem sido de intensa revolta. Ao contrário de outros momentos, tomei uma perigosa posição de manifestar meus sentimentos sobre as eleições mais importantes da história recente do Brasil. À primeira vista, fiz porque sentia uma necessidade incontrolável de colocar para fora o que eu penso, porque me sentia obrigado como cidadão. A omissão não faz parte do caos. Menos ainda do conflito. Sabia que iria arranjar (mais) alguns inimigos, incomodações, dúvidas e uma enorme sensação de aprisionamento entre aquilo que eu posso escrever e aquilo que eu quero escrever. Porque, embora o inimigo seja visível, factível e palpável, talvez, pela primeira vez na minha vida, era um inimigo de verdade, algo mais forte do que um simples ranço com relação a um assunto periférico.

Nos meus textos, critico o jornalismo, o jornalista-celebridade, o deslumbramento com as redes sociais, a esquerda festiva, os analistas táticos e os Millenials. Era fácil, porque eu sei como me defender de tudo isso. Seja pelo princípio da autoridade sobre um assunto (eu realmente sei o que estou fazendo quando escrevo sobre jornalismo e comunicação) ou pela minha covardia de assumir que, no fundo, eu não posso tratar essas outras pessoas como inimigos de verdade. E porque eu sei me defender deles. Eu não quero o mal deles. Eu quero apontar para pequenos itens de suas personalidades, práticas ou procedimentos. Era fácil buscar um conflito com os influenciadores digitais, com os analistas táticos, com o pessoal do Carnaval da Cidade Baixa, com os hipsters, com os adolescentes viciados em Twitter ou com a colega que foi para Londres porque eles nunca representavam de fato um perigo para minha integridade, seja ela profissional, pessoal ou, em última instância, física. Era o conflito pelo conflito e, novamente admitindo uma covardia, eram pessoas que eu usava para satisfazer a minha sede por conflito. Para momentaneamente caotizar minha existência com 15 minutos de adrenalina. Para escancarar minha contradição de que eu, no fundo, gosto deles. Eu bati em todos eles para puramente exercitar minhas obsessões, ainda que inconscientemente. Essa ficha só caiu quando, de fato, enxerguei, talvez pela primeira vez, um conflito que não era pelo rush, não era pela emoção, pelo desejo ou pelo vício. Um conflito, acima de tudo, necessário.

Pela primeira vez, da mesma forma, um conflito tem me feito mal. A atual paranoia brasileira, marcada por mentiras, notícias falsas, agressividade, pós-verdade, burrice, discussões e hostilidade tem feito mal para a minha saúde. Tentei abstrair, mas fui traído pela minha própria natureza. Se o caos e o conflito fazem parte da minha essência, nada melhor do que o Brasil de 2018 para estimular essa obsessão. Só que o buraco é mais embaixo. Desta vez, eu não produzi esse caos e eu não busquei esse conflito. Eles estavam ali, presentes, numa ciranda doentia e eu precisava fazer parte disso. Sou egocêntrico demais para ver o caos e não me atirar nele. Só que, de certa forma, eu sempre controlei os meus movimentos caóticos e sempre regulei meus conflitos. Quando a gente lança a faísca, sabe até que ponto o fogo é seguro antes de se transformar num incêndio. Só que agora foi diferente: só via chamas ao meu redor e achei que seria divertido, porque eu sempre brinquei com fogo, mas com responsabilidade. Mas como é mais forte que eu, se essa via-crúcis virou circo, estou aqui.

O problema é que, ao contrário dos meus outros alvos, eu não consigo lidar com tudo isso que eu vejo. Esse caos é bem mais sério, amplo e perigoso. Esse conflito é mais bélico e selvagem. Esse ambiente não é o meu ambiente, mas eu precisava fazer alguma coisa. Não posso ficar quieto com tanta barbaridade que eu leio diariamente nesse universo estúpido das redes sociais. Num intervalo possível, entendi que já era tarde demais e que ali estava, com minhas contradições, meu caos e minha vocação para o conflito, entrando numa área onde eu não podia controlar isso. Então, virou o jogo e aquilo que me abastecia passou a me fazer mal. Não quero esse caos para mim. Mas, claramente, preciso desse conflito para mim, enquanto cidadão, enquanto jornalista e enquanto um cara que busca um país melhor para todos nós.

O efeito colateral veio depressa. Minha zona de conforto nunca foi tão debilitada como agora. Espremido entre a obrigação de cidadão e minha proteção profissional, enxergo os pontos favoráveis e desfavoráveis de ter entrado nesse furacão. Em jogo, aquilo que construí para o público. Mas, sobretudo, aquilo que penso como cidadão. E, ainda mais, aquilo que me move como ser humano. Entendi que lavar as mãos não era o melhor caminho. Mas nem tudo são flores. Junto com toda essa ousadia programada e nem tão ousada assim, vieram outros dramas que também vivencio pela primeira vez: dúvidas sobre o futuro, sobre o que eu ainda sou e sobre aquilo que eu serei. Nunca um momento que fosse tão alheio àquilo que eu posso tocar mexeu tanto comigo como esse que vivemos agora.

Num último lapso de racionalidade, vejo que sou só um pontinho inexpressivo dentro de um contexto que nós todos tornamos real enquanto cidadão. A bronca não é mais sobre mim e isso também mexe comigo. É sobre todos nós, sobre o que somos, sobre para onde vamos, sobre nossas relações, sobre nosso processo civilizatório, sobre ética, sobre meios para chegar aos fins, sobre cidadania e sobre humanidade. É quase que uma obrigação junto à minha consciência, ao meu ser, à minha essência, à minha pessoa tomar uma posição. Buscar esse conflito não mais por sobrevivência da minha saúde (ou doença) mental, mas por uma força maior, mais ampla, mais potente. Entrar nesse caos não para satisfazer minhas obsessões, mas para fazer parte de uma resistência que também não é por interesse próprio, mas sim por defesa aos princípios básicos de cidadania, democracia, direitos e relações. Querer esse conflito para desabrigar todos os canalhas, os crápulas, os cretinos. Para desipnotizar essa massa de manobra encantada por coisas que nem eles, no âmago, acreditam. Para marcar meu ponto como brasileiro, como cidadão e como ser humano, com todos os meus defeitos (e não são poucos).

Certa vez, eu disse que não lia poesia. Que não gostava de poesia. O Juremir disse que eu era pura poesia e eu não entendi. Que, para gostar de poesia, eu julgava não ter a sensibilidade necessária para degustá-la com merecimento, com paixão e com ternura. Eu não entendia que poesia também era uma expressão do caos. Era uma outra contradição minha. Talvez eu tenha entendido de forma equivocada o que de fato é ter sensibilidade. Talvez eu tenha, mas de uma forma muito particular. Talvez minha sensibilidade seja voltada para expressar toda essa contradição, todo esse caos e todos esses conflitos, que são meus e que agora se misturam, potencializados, em forma de lutar de fato, em forma de palavra, oral ou escrita, por aquilo que eu considero justo. Algo me diz que eu devo parar e ver que o céu está azul, que o Zeca precisa passear, que tem tanta música bonita para ouvir ou que eu vou jantar num lugar legal com a Vivian. Mas tem aquela coisa, que eu não sei explicar, que naturalmente me conduz para mais um conflito, que me entrega ao caos e que escancara minhas contradições. Nira diz que o homem não foge à sua natureza. Que essa natureza seja, neste momento, uma conflituosa, contraditória e caótica poesia nesse cotidiano imundo que nós vivemos em 2018. Nem que seja da pior forma possível.

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Carlos Guimarães
Carlos Guimarães

Written by Carlos Guimarães

Jornalista; comentarista esportivo; doutorando em Comunicação; mestre em Comunicação e Informação; especialização em Jornalismo Esportivo.

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